martes, 16 de octubre de 2012

Teoria do Método Teológico



                O mínimo que se pode dizer é de que se trata de uma obra monumental, que vai marcar a história da teoria do método teológico. O que foi a obra de B. Lonergan com seu The Method (Nova Iorque, Herder and Herder, 1972) para o mundo europeu e saxônico, será essa obra em nosso mundo e para além dele. Pedra miliar. Doravante ela será ponto necessário de referência, como também sua obra sobre o método da teologia da libertação o foi na década de 70 (Teologia e prática: teologia do político e suas mediações, Petrópolis, Vozes, 1978).
             Bem assentado na grande narrativa ocidental da acumulação de conhecimentos, o A. condensa gigantesco universo de informação sobre a metodologia teológica. Fruto de longos anos de pesquisa e ensino. O esquema da obra é simples. Reflete a estrutura das introduções à teologia, carregando, porém, as tintas na parte dos princípios, processos e articulações da teologia. Questões menos importantes são também tratadas à guisa de complementação.
                O cuidado e esmero didático merece relevo. O texto longo é seguido de um resumo em forma de teses com leituras de páginas dos clássicos da teologia. O jogo tipográfico em função da relevância do texto facilita a leitura.
                Não é um livro sobre teologias, ou uma teologia em concreto, mas sobre a prática teológica, sua gramática, suas regras internas, sua epistemologia para que se saiba articular seus elementos fundamentais. O A. aponta doze: a Fé, a Sagrada Escritura, a Igreja, os fiéis, a Tradição, o dogma, o Magistério, a prática, outras teologias, a filosofia e as ciências, a linguagem, a razão. Evidentemente esses elementos poderiam ser agrupados em menos fatores que, por sua vez, abarcariam outros, como suas subdivisões. Para pessoas da modernidade parece faltar entre os elementos fundamentais a palavra tão mágica hoje: a experiência. Aliás o A. a recupera e fala amplamente dela, quando trata da fé. No entanto, julgo que deveria ocupar um espaço próprio já que ela serve inclusive para iluminar conceitos como a prática, a diversidade de teologias, etc. Nesse caso, poderia ter ampliado a lista dos doze.
                Muito pertinente e estimulante é a quádrupla divisão do fazer teologia: técnicas, método, epistemologia e espírito. Faltou-lhe acrescentar um quinto, que, logo em seguida, ele mesmo menciona, a saber, “a ótica” a modo de uma sensibilidade específica. Se o método participa da “high tech”, o teólogo é afetado pela “high touch”, segundo o linguajar pós-moderno. A ótica pertenceria a esse “toque” que tudo afeta.

                Em obra anterior sobre a Teologia do Político, o A. distinguiu um regime interno ou da autonomia referente ao aspecto metodológico-epistemológico e um regime externo ou da dependência dizendo respeito ao lugar social do teólogo, onde se fazem as opções. Lá como aqui ele decide pela “ótica da libertação”, como um bom teológico da nossa tradição latino-americana que valoriza esse traço genuíno da fé evangélica. Além desse enfoque, reconhece outros como importantes hoje: feminista, étnico, inter-religioso e ecológico. São, no fundo, dimensões constitutivas e transversais do ser humano com emergências históricas. Necessitam ser articulados entre si, tendo a dimensão libertadora nítida precedência. Nenhum desses enfoques substitui naturalmente o enfoque da fé, que garante a identidade e unidade dos diferentes discursos teológicos.
                Ao apontar a fonte da teologia, Cl. Boff une belamente a fé e o amor, superando uma perspectiva puramente intelectualista da teologia. A teologia é mais um discurso de Deus que sobre Deus. A fé é a seiva, a fonte, o fermento. O A. mostra-se muito sensível ao toque místico, afetivo, iniciático, de experiência da graça, da ação do Espírito no fazer e entender o que é teologia. São aspectos muito valorizados em nossos dias. Nem por isso, sucumbe ao emocionalismo barato, mercadoria em alta.
                Depois de introduzir o leitor na teologia (capítulo primeiro), definindo-lhe sua natureza (capítulo segundo) e objeto (capítulo terceiro), avança para dentro da espinhosa questão da relação teologia e razão, fé e razão (capítulo quarto), tornada aguda especialmente por causa das pretensões de absoluta autonomia da razão iluminista. O A. começa com uma crítica ao reducionismo que a razão iluminista faz da razão como tal, identificando-a com sua dupla função demonstrativa e científica. BOFF propõe, por sua vez, um duplo alargamento da razão pelas funções discursiva e intuitiva. Nesse horizonte de reflexão, introduz a distinção pertinente entre “intellectus fidei” e “ratio fidei”, a primeira como originária e originante do pensar que atua no campo da fé. A fé busca a “razão”, a teologia as “razões”. Esta nasce do “intellectus fidei” para tornar-se, em seguida, “ratio fidei”. Distinção que dirime muito mal entendido tanto racionalista como fideísta. Na teologia, está em jogo, de um lado, a autonomia da razão, mas, de outro, sua condição de submissão à fé. A razão teológica sofre do desmaio da vastidão de seus espaços, mas também usufrui da beleza de sua tarefa múltipla demonstrativa, defensiva e construtiva em relação à fe.
                 A racionalidade teológica assume duas formas: razões de conveniência e razões de necessidade. Na teologia mariana, usa-se muito a razão de conveniência, segundo a expressão lapidar de Duns Scotus e Santo Anselmo: “potuit, decuit, ergo fecit”. À guisa de exemplo: Deus pôde fazer Maria imaculada, tal foi conveniente, logo a fez. A razões necessárias são fruto de argumentos constringentes. Assim, a prova da existência da vontade humana de Jesus como conclusão lógica, silogística, do fato de ele ser verdadeiramente homem.
                A razão teológica é sobretudo hermenêutica enquanto ela procura interpretar a revelação para diferentes contextos culturais. Nesse assunto, a teologia alimentou-se muito do avanço da hermenêutica moderna de Schleiermacher a Ricoeur.
                O capítulo termina com um último parágrafo dedicado à relação entre teologia e ciência. O A. segue rigorosamente o mesmo método de esclarecer os termos no contexto cultural geral para depois entendê-los em relação à teologia. Traça rápido conspecto do significado de ciência, partindo dos antigos, passando pelas ciências dedutivas, empírico-formais e hermenêuticas para em seguida aplicá-lo à teologia. Detém-se em três características fundamentais da ciência na teologia: criticidade, sistematicidade e dinamicidade. A modo de excursus, o A. retoma a idéia da dimensão espiritual, pneumatológica da teologia. Acrescenta ainda uma reflexão sobre o seu caráter de cruz, de “razão crucificada”.
                Desde o início do livro, a teologia vem sendo relacionada com a fé. Em vários capítulos seguintes, concluindo essa primeira grande seção, o A. dedica-se a aprofundar as três dimensões da fé: a fé-palavra (capítulo quinto), a fé-experiência (capítulo sexto) e a fé-prática (capítulo sétimo).
                Incluído dentro da perspectiva do método, trata-se, na verdade, de pequeno tratado sobre a fé. A fé-palavra, a fides quae, a fé positiva ou dogmática, é apresentada como princípio formal da teologia, o que lhe confere especificidade. É antes de tudo a palavra do testemunho, a revelação de Deus, transmitida na e pela Igreja. Só em momento ulterior se converte em doutrina. O A. distingue a Revelação enquanto princípio objetivo da construção da teologia e a fé como princípio subjetivo. Com efeito, a Revelação e a fé são duas faces diferentes de uma mesma realidade complexa. Deus só se revela, se existe fé que a acolhe. Só há fé, se Deus se revela. No concreto, apenas se distinguem. Quando falamos revelação, denotamos Deus e conotamos a recepção humana. Quando falamos fé, denotamos a recepção humana e conotamos a Deus revelador. Talvez o A. tenha podido ter mostrado mais essa íntima relação. Um leitor incauto pode separar o que é distinção.
                O corte entre Palavra de Deus e realidade, Palavra de Deus e antropologia, também não pode ser extremado, já que não há realidade humana senão empapada pelo Deus revelador e revelante, sempre atuante. A teologia tem de andar com muita cautela nesse campo da relação entre Transcendência e imanência, evitando o equívoco gigantesco do nefasto dualismo, sem sucumbir ao canto da sereia pós-moderna do monismo panteísta. O A. consegue articular bastante bem esses pólos, embora tendendo a marcar a diferença. Rejeitar sem mais a afirmação de que a teologia parta da “experiência de fé da comunidade”, como faz o A., pode ser um pouco exagerado. Pois, a experiência de fé da comunidade, em última análise, é elemento de reconhecimento da Palavra de Deus. Não há uma Palavra de Deus que paire fora da experiência de fé da comunidade que a acolhe, escreve, transmite de maneira que outras comunidades a reconheçam como Palavra de Deus. Nada disso acontece sem ação transcendental do Espírito.
                O A. vê como problemático que a fé-experiência e a fé-práxis sejam ponto de partida formal da teologia. São reflexões teóricas agudas. Será que talvez ele não force demasiado a distinção entre o princípio formal objetivo e o princípio formal subjetivo da teologia? Distinção naturalmente correta, mas que nem sempre ilumina a prática teológica, em que os princípios se interpenetram.
                No capítulo sexto, debruça-se sobre a importância da fé-experiência como fonte da teologia, embora não lhe seja principio formal.
Há belas páginas da raiz mística, a “alma orante” de toda teologia. Teologia é sabedoria. Uma sabedoria entre a filosófica e a mística. Como conteúdo, toda teologia é sabedoria; na sua forma, só a teologia sapiencial é sabedoria. Esse tipo de consideração corrige uma concepção fria e escolar da teologia, devolvendo-lhe o gosto espiritual.
                No capítulo sétimo, o A. defronta-se com um tema que já trabalhou longamente em outra obra sua, acima citada: a fé-prática. Trata-a sob o aspecto de princípio cognitivo. Princípio subordinado e dependente do princípio principal e determinante, que é a fé-palavra. A prática lança certa luz sobre a teologia, ajuda desvelar o Deus revelado. A fé determina a prática e a prática sobredetermina a fé. De maneira arguta, o A. introduz uma série de distinções, que, de um lado, podem esclarecer o assunto, de outro, mostram enorme sutileza, não tão fácil de ser captada.           
                O A. elabora com muita profundidade o primado da prática, tanto no nível prático relativo à fecundidade da fé quanto no teórico relativo à verdade da fé. A teologia não se pode limitar ao puro nível da verdade de suas afirmações, mas deve atender também a sua fecundidade em relação à vida, a sua relevância histórica. Aí há um primado da prática. No nível teórico, a teologia tem a ver, antes de tudo, com a Revelação, que é síntese da teoria e prática divinas. Se se pode falar de um primado em Deus, este é o da prática, do agir criador e salvador. Bem sintético, Cl Boff diz: A fé-palavra julga a prática da fé, mas esta julga a teologia concreta. É nesse contexto que entra a questão do privilégio epistemológico, hermenêutico do pobre. O pobre oferece melhores condições para conhecer a Revelação. Além disso, o sofrimento, que afeta de modo tão especial os pobres, é o caminho mais curto para a verdade.
                A segunda grande seção do livro aprofunda os processos da produção teológica. A fé se ouve (auditus fidei). A fé deixa-se penetrar pela inteligência (intellectus fidei) e a fé se prática (applicatio fidei). Temos aí a estrutura fundamental que corresponde ao ver, julgar e agir ou à hermenêutica, à especulação e à prática.
                O capítulo oitavo, nas suas duas partes, consagra-se ao momento da escuta da fé, conhecido na tradição como “auditus fidei”. É a positividade da fé. Fazer teologia é, antes de mais nada, ouvir a Palavra de Deus. Na escuta da fé, há os testemunhos primários – a Escritura junto com a Tradição apostólica, testemunhos secundários (senso dos fiéis, magistério, santos padres, teólogos) e testemunhos alheios (religiões não-cristãs, filosofias, ciências, história, sinais dos tempos).  Trata-se de uma escuta ativa e crítica em três momentos. Os dados devem ser descobertos (momento heurístico), interpretados (momento hermenêutico) de uma maneira discernida (momento crítico). O A. avança uma reflexão tipicamente da teologia fundamental, sob o ângulo do método, elucidando as tensões entre palavra e escritura, e apresentando critérios de interpretação da Escritura. Na segunda parte do capítulo, debruça-se sobre a Tradição. Conceito plural que recebe acurado tratamento. Em seguida, detém-se em explicitar a natureza do dogma e os caminhos de sua interpretação. Aborda com agudeza a complicada questão da distinção entre conteúdo e forma. Teria ajudado o leitor se o A. tivesse distinguido os dois universos hermenêuticos fundamentais, o clássico especular em que a verdade era vista na sua pura realidade objetiva e o da hermenêutica moderna em que se considera já a relevância do sujeito interpretador. O A. situa-se evidentemente nessa vertente moderna, mas muitos leitores, desde uma perspectiva tradicional, podem ter dificuldade de entendê-lo.
                O capítulo nono enfrenta o processo de construção da teologia. Entre as funções atribuídas por Santo Tomás à teologia, o A. concentra-se na explicativa. A teologia explica a fé. Para isso, analisa, sintetiza, cria; ou compreende, sistematiza e avança. Este capítulo pareceu-me demasiado formal. Faltou-lhe recorrer talvez a novas categorias atuais como as de paradigma, modelo, que ajudam altamente o avanço da teologia. Alude simplesmente a outras lógicas que não ocidentais, mas sem nenhuma explicitação como isso se poderia fazer.
                Fechando a trilogia da construção teológica, o capítulo décimo debate-se com o momento da prática na teologia: o confronto com a vida. Fé e vida: tema predileto da teologia da América Latina. Muito do que se disse atrás sobre a fé-prática vale também aqui. Considera-se a fé “ad extra”. Toda teologia tem uma face voltada para a vida, para a prática, para ação concreta, já que reflete sobre verdades orientadas à nossa salvação. O termo vida tem arco mais amplo que práxis, política. A vida social merece destaque, tanto sob a forma de cultura do tempo, como de realidade viva das pessoas. Essa duplicação de níveis do A. pode parecer supérflua, desde que o conceito cultura seja entendido num sentido mais abrangente.
                Fechando essa substanciosa segunda seção, o A. trata no capítulo undécimo a questão da linguagem teológica. Inicia o capítulo limpando a área linguística dos riscos da univocidade, do antropomorfismo, do superlativismo, da equivocidade, do agnosticismo, para entrar na verdadeira linguagem teológica: a analógica. Prefere recorrer aos clássicos que adentrar-se pela lingüística moderna. Retoma o ensinamento escolástico sobre analogia. Em dado momento, pode parecer que se faz um corte demasiado grande entre o nível do conhecimento e ontológico. As distinções facilitam a compreensão desde que não sugiram separações. Como o A. tem uma linguagem, em geral, cortante e vigorosa, nas suas distinções, pode induzir a um menos atilado ao equívoco da separação. Essa observação vale para muitos momentos do livro. Além disso, talvez tenha descartado com severidade achegas úteis que poderiam vir da lingüística moderna, cujos resultados não valoriza.
                Se o livro de Cl. Boff tivesse terminado com a segunda parte desse capítulo onze, já se poderia considerá-lo completo. As duas seções estruturam uma obra, em si, já acabada, quanto ao método teológico. Julgo que se teriam alcançado alguns efeitos positivos, se se tivesse concluído aqui o livro.
                O que se segue são antes scholion, para usar uma expressão escolástica, com maior ou menor importância. Podia ter sido material para outros livros menores. Em todo caso, todo A. tem direito de conceber o edifício de sua obra numa unidade maior ou menor.
                Sobre essa terceira seção e sobre toda a segunda parte, farei referências mais rápidas, para simplesmente localizar o leitor. Alguns elementos já foram rapidamente tratados antes e outros poderiam ter sido inseridos em parágrafos anteriores. Mas respeitando a estrutura do A., seguem-se breves observações.
                O capítulo doze discorre sobre a relação da teologia com a filosofia e as demais ciências. Questão clássica. Mantém com as mesmas uma relação exterior e interior. Na tradição clássica, a teologia ocupava o lugar supremo do saber humano por tratar de Deus, que é tanto o objeto mais sublime do conhecimento quanto o objetivo maior da vida humana. Depois de mostrar certa ambigüidade da relação da modernidade com a teologia, o A. entra mais diretamente na questão do método. Analisa o quanto a teologia necessita de outros saberes, aproveitando o que eles lhe podem oferecer e descartando o que é incompatível com a fé (código deontológico).
                No trabalho de abelha, a teologia recorre a mediações teóricas, vindas tanto da filosofia como de outras ciências. Em relação à filosofia, “a teologia incorpora uma reflexão filosófica na exata medida em que ela reflete a resposta divina à questão humana sobre o sentido último da vida e do mundo”.  A teologia debate-se também com os sistemas filosóficos, que revelam as concepções de vida reinantes num dado momento da cultura.
                Esse capítulo é extremamente iluminador para a discussão atual a respeito da importância da filosofia na formação teológica dos futuros sacerdotes. Mutatis mutandis, vale para a formação humana nas outras áreas. O capítulo termina com a rápida alusão à mediação das outras ciências. Talvez tenha faltado aqui um pouco de “atualidade”, incorporando a questão aguda da relação da teologia com a física moderna, com nova cosmologia, etc. Isso se justifica da parte do A. pela escolha de permanecer preferentemente nos aspectos formais sem entrar tanto em questões concretas de diálogos específicos.
                O capítulo treze aprofunda a questão da relação entre teologia e vida, já esboçada em outros momentos do livro. Sem perder de vista a tarefa primordial da teologia no campo direto do conhecimento de Deus, mostra com clareza uma ampla gama de outras funções da teologia no mundo da vida do indivíduo, da sociedade, da Igreja..
                No capítulo quatorze, a prática teológica é situada no interior da Igreja com suas diversas formas de magistério. A Igreja é o sujeito primário e geral também do carisma, serviço e missão da teologia. É o mesmo sujeito que crê e reflete sobre sua fé. E o faz na e em Igreja. No nível formal, a relação entre teologia e Igreja é absolutamente evidente e escorreita. Os fundamentos eclesiológicos saltam aos olhos. Quanto mais concreta é a relação, mais conflituosa. O A. discorre também sobre os diversos encontros da teologia com a Igreja: sensus fidelium, magistérios nas suas diversas expressões. Introduz uma categoria menos conhecida: magistério carismático dos santos, mártires, profetas e reformadores, monges, miraculados, pequeninos, anciãos, mulheres, peritos, pobres e sofredores. Detém-se mais longamente no magistério dos pastores. Aí oferece elementos interessantes e equilibrados de compreensão do assunto. Os nove critérios de interpretação refletem posição madura e aberta diante da contribuição da hermenêutica moderna.
                Numa segunda parte desse mesmo capítulo, o A. esmiúça ainda mais a relação entre teologia e magistério, recorrendo ao instrumento didático do modelo. Equilíbrio e abertura caracterizam esse percurso mais detalhado dessa questão do duplo magistério dos pastores e dos teólogos. Para um leitor interessado nessa espinhosa questão, uma posição um pouco mais crítica, posto nos limites da fé eclesial, encontra-se na obra de J. L. González Faus (La autoridad de la verdad: momentos oscuros del magisterio eclesiástico, Barcelona, Facultat de Teologia de Catalunya, 1996).
                Quase que a modo de conclusão dessa parte, o capítulo quinze desenvolve o tema do pluralismo religioso. Outro discurso atual e delicado. Impõe-se como uma necessidade de uma fé transcendente e histórica. Hoje percebido de modo mais agudo  depois da revolução hermenêutica da filosofia moderna. Implica atitudes tanto intelectuais como psicológicas e ético-espirituais.
                A última parte do livro sob o título de “Questões complementares” aborda temas diversos. Vai aqui rápida menção. Estudar teologia é um ato do homem todo. Supõe tanto assumir atitudes básicas como as de amor a esse estudo, de senso do mistério, de compromisso com o povo como de superar preconceitos advindos de uma cultura pragmática, antiintelectual, fideísta e de alienação.
                Já no início o A. estudou o que é teologia. Agora dedica um capítulo para complementar o anteriormente dito com breve elucidação da história do termo e suas lições. Em seguida, pergunta-se pelo que há de teologia na Bíblia. Questão que já aventara, ao tratar da fé-palavra como fonte primeira e decisiva da teologia e como momento primeiro da prática teológica. Numa questão tipicamente de teologia fundamental, avança a reflexão a respeito dos caminhos do conhecimento de Deus: Razão pura, as Religiões, a Revelação.
                Na questão da linguagem, em capítulo anterior, o A. concentrara-se na sua natureza analógica. Complementando, discorre sobre três tipos de discursos teológicos: profissional, pastoral e popular. As divisões da teologia e sua articulação situam o leitor diante de uma árvore frondosa de muitos ramos. O A. dá conta tanto do fenômeno do esgalhar-se da teologia como do da existência de princípios que lhe permitem captar a unidade primigênia. Faz, em capítulo seguinte, um percurso histórico, desocultando os modelos teológicos aí praticados. Para cada modelo, aponta o seu gênero, problemática, destinatário, objetivo, mediação cultural, tipo de teologia e representantes em um quadro didático e esclarecedor. Uma cronologia da produção teológica com nomes e obras importantes oferece um primeiro guia para os leitores. Naturalmente, muitos podem discordar de certas escolhas e omissões. Mas “qui a le choix, a la croix”.
                Os dois últimos capítulos são bem práticos. Oferece subsídios para como estudar teologia conjugando a aula magistral, o estudo privado, o trabalho em grupo e a pesquisa e como orientar-se no matagal das obras teológicas e revistas. Termina com uma bibliografia essencial e acessível sobre o método teológico. Desta sorte, terminamos a longa viagem pelas 758 páginas do livro.
                É realmente uma obra extraordinária por muitos lados. Não conheço nenhuma que ofereça uma visão tão ampla e complexiva do método teológico, conjugando arguta capacidade de distinção com um sopro de vida, místico, de beleza espiritual. Equilíbrio raro ao tratar de um tema tão árduo e técnico. O A. não sacrificou em nada a exatidão, o rigor nas infinitas distinções. De vez em quando, faz correr uma aragem de vida que anima a estrutura óssea gigantesca do livro.
                A obra está permeada de citações dos clássicos, mostrando a beleza dessas fontes originárias da fé. O A. manifesta excelente manuseio dos clássicos da filosofia e da teologia, enriquecendo seu texto com a profundidade desses mestres do pensar.
                Talvez o excesso de distinções possa cansar um leitor pós-moderno, afeito a ícones e não a conceitos. No entanto, cumpre o A. papel educador na corrente contra-cultural. Um certo rigor formalista não empobrece em nada a obra, antes oferece um mapa detalhado para passear pela floresta teológica. Pessoalmente aprecio muito esse tipo de pensar. Entendo que alguns leitores não participem de meu entusiasmo, já que preferem antes a poesia que a didática, antes o passeio que o conhecimento do caminho, antes o sabor do doce que a exatidão da receita, antes o efeito que o conhecimento das causas, antes a leitura de belezas teológicas que o enfrentamento com rigor metodológico.
                A linguagem do A. conjuga bem a tecnicidade das lógicas formais ao vigor criativo de palavras, imagens e metáforas Mesters-ianas em belo equilíbrio. Além dos clássicos, há abundância de citações diversas, interessantes, pertinentes, atraentes, divertidas.
                Apesar de ser um livro bem estruturado que procede preferentemente de modo linear, contudo tem algo de espiral. Temas importantes voltam várias vezes em ondas de maior profundidade. Destarte, marca mais forte a presença de elementos fundamentais.
Mais que uma obra para ser lida de uma vez pode tornar-se, sem dúvida, um texto-base para consultas à medida que o leitor necessite recordar ou informar-se de determinado ponto nele tratado. Abrange elementos tanto estritamente ligados à teoria da metodologia teológica, como à teologia fundamental e mesmo à eclesiologia, tal é a sua riqueza. Creio que nenhum Instituto teológico pode hoje dispensar-se de adquiri-lo entre os livros necessários de referência para o curso teológico.

Desafios para a teologia da América Latina


     A teologia persegue a tarefa que Santo Anselmo muito bem definiu: fides quaerens intellectum. – a fé que busca inteligência. Essa inteligência depende da situação em que se encontra a fé. Traçarei quatro cenários para a fé no momento atual com quatro perspectivas teológicas diferentes.
1º cenário: Morte da teologia

     Acontece a extinção radical do Cristianismo histórico e com ele desaparece o Cristo da fé. Tantas religiões já deixaram de existir na história e seus deuses morreram e com eles a fé que as pessoas tinham neles? Onde estão os deuses egípcios, babilônicos, de muitas tribos indígenas e africanas que se extinguiram? Fato semelhante acontecerá com a religião cristã e com a fé no Deus cristão. Morrendo a fé, morre também a teologia. Autores como M. Onfray [Tratado da ateologia: física da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2007], R. Dawkins [Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007], Sam Harris [Carta a uma Nação Cristã. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 ]anunciam tal fato, depois do grito nietzschiano do século passado.

2º Cenário: teologia do Cristianismo anônimo

      Não se trata propriamente da morte do Cristianismo, mas de sua dissolução na cultura ocidental. Se até então ele aparecia na visibilidade de uma grande porção de sal, agora já não vemos o sal, mas sentimos a água salgada. K. Rahner usou a expressão “Cristão anônimo” para quem não se confessa cristão, mas vive os valores fundamentais da fé cristã. A teologia do Cristianismo anônimo se assemelha a tal consideração, ao desvelar na cultura ocidental, na vida das pessoas e da sociedade a presença velada da fé cristã e sobre ela reflete, produzindo assim verdadeira teologia do Cristianismo anônimo. Reflexões semelhantes se encontram em M. de Certeau na discussão com Jean Domenach (M. de Certeau – J.-M. Domenach. Le christianisme éclaté. Paris: Seuil, 1974).

3º Cenário: Teologia da restauração

       Reagindo aos dois possíveis cenários anteriores, o Cristianismo enceta forte reação numa dupla linha. Busca no passado, o modelo para restaurá-lo hoje com toque naturalmente modernos. Mas persiste na rigidez das verdades de fé, da moral e da disciplina eclesiástica. De maneira original, João Paulo II o apresenta, na análise D. Hervieu-Léger [D. Hervieu-Léger: Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental, Paris, Du Cerf, 1986, p. 329ss.], como proposta de firmeza e robustez de fé em vista da superação da fragmentação da pós-modernidade. Denomina tal posição de “concentração católica”. O Cristianismo tem força de reestruturar o mundo por causa de sua bimilenar Tradição que necessita ser aproveitada e valorizada. Em vez de assumir posição conservadora, propõe, numa cultura sem sentido e quebrada, salto para frente. Acena para a força consistente da fé. Rejeita conivência com os tempos atuais naquilo que eles contrariam a seriedade da fé cristã.

4º Cenário: teologia profética

      Algo do Cristianismo realmente acabou. Enquanto sistema religioso, ligado à modernidade do Ocidente, sofre da mesma crise agônica da cultura ocidental. Algo de novo está a nascer. Não sabemos bem o quê. Surge no embate com o Terceiro Mundo, com as Grandes Tradições Religiosas do Oriente, com a revolução tecnológica nos dois campos principais da biologia e da informática.
Anuncia-se a sociedade do conhecimento em que dois grupos interessam especialmente ao Cristianismo. Aqueles que estarão na fonte de criação do conhecimento e os que são excluídos do sistema. Evangelizar os primeiros tem importância no sentido de impregnar a cultura, produzida por eles, da proposta cristã. Aí estão os destinatários privilegiados da evangelização. E os excluídos também ocupam o coração da proposta cristã pelo simples fato de serem os marginalizados, os pobres do sistema.
      O fenômeno religioso desafia a teologia [J. B. Libanio: A Religião no início do milênio, São Paulo, Loyola, 2002.]. Para isso, ela carece elaborar com clareza a distinção entre fé, religião e religiosidade, de um lado, e, de outro, sua articulação. A partir daí, torna-se viável respeitar as religiões, o sentimento religioso, sem abrir mão da originalidade da fé cristã. Questão que será cada vez mais relevante. Acrescente-se ainda a questão ecológica que vem carregada de mística e espiritualidade e carece de confronto concreto com a fé cristã tanto no nível das exigências da responsabilidade ética quanto de uma teologia do Deus pessoal.
      Cl. Boff [Uma Igreja para o próximo milênio, SP, Paulus, 1998] aponta como qualidades da fé futura: mística, querigmática, hospitaleira, misericordiosa e carregada de esperança.
     Os desafios da teologia se diferenciam conforme predomine um cenário sobre o outro ou o teólogo habite cenário determinado. Na América Latina, sofremos o impacto de todos os cenários não da mesma maneira. Alguns países passam por violenta descristianização, outros só em determinadas regiões, outros ainda conservam estruturas religiosas poderosas. Portanto, prevê uma pluralidade de teologias. E do teólogo da América Latina, comprometido com a causa dos pobres, espera-se lucidez. 


Obras

BENTO XVI. Sumo Pontífice: Carta Apostólica sob Forma  de Motu Proprio- PORTA FIDEI. Paulinas,2O11.p. 24.
BOFF, Clodovis: Teoria do método teológico. Petrópolis, Vozes, 1998, 758pp 22,3 x 15,8 cm. ISBN 85-326-1963-0
CNBB. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Teologia e Ensino, Subsídios Doutrinais, 6. ed. CNBB. 2O11.p.53
RATZINGER.Joseph: Natureza e Missão da Teologia, Vozes, 2O12, p. 1O4.
LIBANIO. J. B.: Em busca de lucidez. São Paulo, Loyola, 2008.

No hay comentarios:

Publicar un comentario