martes, 16 de octubre de 2012

Concílio Vaticano II


Questionamentos sobre o Concílio Vaticano II

Conferência do Prof. Roberto de Mattei – Roma, 17 de março de 2012

Uma premissa necessária: a crise da fé contemporânea

O problema que tratamos não é uma questão abstrata, mas toca concretamente o modo de viver a nossa fé, em um momento histórico descrito este ano por Bento XVI com estas palavras: “Como sabemos, em vastas zonas da terra a fé corre o perigo de apagar-se como uma chama que não encontra mais alimento. Estamos diante de uma profunda crise de fé, e uma perda do senso religioso que constitui a grande perda para a Igreja de hoje”[1]. A discussão não pode se limitar a um puro interesse cientifico, mas deve partir da necessidade de compreender a natureza da crise da fé em ato.

A crise da fé e o Concílio Vaticano II

Bento XVI quis fazer coincidir o Ano da Fé com o quinquagésimo aniversário do Concílio, auspiciando que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares “sejam lidos de maneira apropriada”, e “sejam conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no interior da Tradição da Igreja”, ou seja, integrados à Tradição da Igreja, indicando ainda um instrumento para essa assimilação: o Novo Catecismo da Igreja Católica. Depois de se dizer convicto que o Concílio é “a grande graça da qual a Igreja se beneficiou no século XX”, o Papa, citando o seu Discurso a Cúria Romana de 22 de dezembro de 2005, repetiu que o Concílio Vaticano II, “se o lemos e recebemos guiados por uma justa hermenêutica”, “pode ser e se tornar sempre mais uma grande força para a sempre necessária renovação da Igreja” [2]. Bento XVI admite então a existência de um nexo entre a atual crise de fé e o Concílio Vaticano II, embora considere que esta crise não se deva ao Concílio em si mesmo, mas seja favorecida por uma má hermenêutica, uma incorreta interpretação de seus textos.

Problema hermenêutico ou problema histórico?

Não pretendemos contradizer o quanto afirma o Santo Padre, mas o problema da relação entre a crise da fé e o Concílio Vaticano II exige uma resposta não apenas sobre o plano hermenêutico, mas também, se não sobretudo, sobre o plano histórico. Qualquer que seja o juízo sobre os documentos do Concílio, o problema de fundo não é o de interpretá-lo, mas de compreender a natureza de um evento histórico que marcou o século XX e o nosso. Para desfazer o nó da relação entre o Vaticano II e a crise do nosso tempo, antes colocar em prática a hermenêutica dos textos, devemos fazer uma avaliação histórica dos fatos. E só depois a reconstrução histórica, e não antes, é que intervirão o teólogo ou o Pastor, para formular os seus juízos. O conhecimento histórico não tem por objeto o significado dos documentos, mas a verdade dos fatos [3]. A história é Das verstehen: compreensão dos acontecimentos. A capacidade do historiador está no compreender a essência de um evento, buscando traçar as causas e as consequências nas ideias e nas tendências profundas de uma época: neste caso, a época do Concílio Vaticano II.

O Concílio Vaticano II: intenção e expectativas

Então, nos atenhamos aos fatos. João XXIII, na alocução com a qual inaugurou o Vaticano II, em 11 de outubro de 1962, explicou que o Concílio foi convocado não para condenar erros ou formular novos dogmas, mas para propor, com linguagem adaptada aos novos tempos, o perene ensinamento da Igreja [4]. O Concílio pareceu a muitos como uma extraordinária oportunidade de renovar a Igreja. Ocorre, na realidade, que a dimensão pastoral, em si acidental e secundária em relação à dimensão doutrinal, essencialmente se tornou prioritária, operando uma revolução no estilo, na linguagem e na mentalidade. O Padre John W. O’Malley explicou bem como as profissões de fé e os cânones foram substituídos por um “gênero literário” que ele chama “epidítico” [5]. Foi este modo de se exprimir que, segundo o historiador jesuíta, “marcou uma ruptura definitiva com os Concílios precedentes” [6]. Exprimir-se em termos diversos do passado significa aceitar uma transformação cultural mais profunda do que possa parecer. O estilo do discurso revela, de fato, mesmo antes das ideias, as tendências profundas da mente de quem se exprime. “O estilo é a expressão última do significado, é significado e não ornamento, e é também o instrumento hermenêutico por excelência” [7].

Os resultados do Concílio

Não discutimos as boas intenções de João XXIII. Todavia, igualmente indiscutível, os resultados não foram proporcionais às expectativas. As palavras com que Paulo VI falava de “auto-demolição” da Igreja, “ferida por quem dela faz parte” [8] são de 1968, aquelas sobre a “fumaça de Satanás no templo de Deus (...)” [9], são de 1972. Permitam-me citar a mim mesmo: “o colapso da segurança dogmática; o relativismo da nova moral permissiva; a anarquia no âmbito disciplinar, o abandono do sacerdócio e da vida religiosa por parte dos sacerdotes e dos religiosos e o distanciamento da prática religiosa de milhões de fiéis, a infiltração da heresia através dos novos catecismos e novos ritos, as contínuas profanações da Eucaristia, o massacre das almas enquanto as igrejas se livravam do altar, mesas da comunhão, crucifixos, imagem de santos, mobiliários sacros, quadros que acabaram em catálogos de antiquários. A ‘primavera da fé’, que deveria seguir ao Concílio Vaticano II, aparecia mais como um rígido inverno, documentado sobretudo pelo colapso nas vocações e do abandono da vida religiosa” [10]. O balanço global dos quarenta anos pós-conciliares 1965-2005, com respeito às perdas totais e percentuais dos principais institutos religiosos, será ainda mais dramático [11].

A tese oficial

“O que deu errado”, para usar o título de um folheto do filósofo Ralph McInerny [12]? A resposta que escutamos oficialmente repete aquela formulada primeiramente por Paulo VI, que em 23 de junho de 1972, nos mesmos dias em que registrava “a fumaça de Satanás no templo de Deus”, em um discurso aos membros do Sacro Colégio, denunciava “uma falsa e abusiva interpretação do Concílio, que seria uma ruptura com a tradição, também doutrinal, chegando ao repúdio da Igreja pré-conciliar, e a licença de conceber uma Igreja «nova», quase «reinventada» do seu interior, na constituição, no dogma, no costume e no direito” [13].A tese oficial era aquela do Concílio “traído” pelos progressistas: nesta traição estava, segundo Paulo VI, a raiz dos problemas da Igreja pós-conciliar.

A tese progressista: o Concílio traído.

A esta tese se opunha aquela dos inovadores. A Storia del Concilio Vaticano II [4], de Giuseppe Alberigo, apresenta o Concílio como a tentativa de purificar a Igreja do seu passado. Uma tentativa felizmente iniciada por João XXIII, mas “traída” por Paulo VI e seus sucessores. O Concílio Vaticano II deveria ser a medida de juízo da história e da tradição da Igreja. O leque do progressismo é amplo e variado, mas hoje o ex-sacerdote e abade de São Paulo [Fora dos Muros], Giovanni Franzoni, resume eficazmente esta posição que, a nível hermenêutico, contrapõe-se diretamente àquela de Bento XVI: “Desejando sintetizar, descreverei o nó do contraste que atrapalha a Igreja Católica há décadas: para Wojtyla e Ratzinger, o Vaticano II é lido à luz do Concílio de Trento e do Vaticano I; para nós, pelo contrário, estes dois Concílios são lidos, e relativizados, à luz do Vaticano II [Ndt.: Lembre-se aqui do texto de Mons. Ocariz publicado por nós; “O Vaticano II à luz da Tradição e a Tradição à Luz do Vaticano II: o Vigário-geral do Opus Dei responde aos tradicionalistas no Osservatore Romano,” e também do texto de Paolo Pasqualucci em que aborda a “chave hermenêutica a desenvolver”: a colaboração “do ‘contra-espírito do Concílio’ ao verdadeiro ‘espírito do Concílio’” em “O “debate crítico” que a hierarquia não quer realizar. Recensão à obra “Concilio Vaticano II, il discorso mancato” de Monsenhor Brunero Gherardini”].Então, dada esta divergente perspectiva, os contrastes não podem ser elimináveis. E vemos escorrer da Cátedra Romana, todos os dias, normas, decisões e interpretações que, a nosso juízo, estão em conflito radical com o Vaticano II” [15].

A tese tradicionalista

Com o nome impróprio de “tradicionalistas” são definidos alguns estudiosos que expressaram criticas e perplexidades sobre o Vaticano II e seus documentos. Entre estas obras são recordadas Iota Unum, de Romano Amério [16]; os estudos teológicos de Mons. Gherardini [17], mas também a convenção organizada pelos Franciscanos da Imaculada em dezembro de 2010 [18]; a Súplica promovida em 2011 pelo Prof. Paolo Pasqualucci [19]; e as recentes intervenções do Padre Jean-Michel Gleize [20] e Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira [21].

A minha posição

Embora associando-me aos pedidos de esclarecimento estudiosos, ofereço, de minha parte, uma contribuição que não é a de teólogo, mas de historiador. Não entro, portanto, nas discussões hermenêuticas sobre continuidade/descontinuidade dos documentos. O que narro no meu estudo são os fatos, o que reconstruo é o contexto histórico em que os documentos do Concílio vieram à luz. E sobre este âmbito histórico afirmo o caráter revolucionário deste evento. Pode-se dizer, de fato, do Concílio Vaticano II, aquilo que os historiadores dizem da Revolução Francesa: “a sua importância está também no fato de ser capaz de agir como um mito, não apenas depois, mas já durante o seu desenrolar. O mito, antes, podemos dizer, é conatural à sua essência” [22].

Questões em discussão

Para o historiador da Igreja, a dimensão histórica não pode ser, todavia, separada daquela teológica. Trata-se de dois âmbitos, mas conexos e interdependentes, como são a alma e o corpo no organismo humano. E se os fatos históricos colocam problemas teológicos, o historiador não pode ignorá-los, mas deve trazê-los à luz, movido por amor à Igreja e não pelo desejo de denegri-la. Ao mesmo tempo, sobre no âmbito teológico, todos os batizados têm o direito de levantar os problemas e colocar questões à legítima autoridade eclesiástica, embora ninguém tenha a faculdade de substituir o supremo Magistério da Igreja para resolver de forma definitiva os pontos controversos. Estas são as questões em discussão.

Primeira questão: os documentos do Concílio Vaticano II

Se existe uma questão hermenêutica, existem documentos pouco claros [23]. Como afirma um antigo brocardo: in claris non fit interpretativo. E se existem documentos pouco claros, a falta de clareza constitui, certamente, um limite, e não uma qualidade destes documentos.

Com o termo hermenêutica, que nasce, sobretudo, depois de Schleiermacher no mundo dos exegetas protestantes, entende-se as “técnicas de algo dificilmente compreensível” [24]. Mas as dificuldades interpretativas que podem apresentar um texto das Sagradas Escrituras não são admissíveis em um documento pastoral, que se propõe dirigir de forma mais eficaz aos homens de seu tempo. A existência de passagens ambíguas e equívocas nos documentos do Concílio Vaticano II é demonstrada pela necessidade de interpretá-los e de esclarecê-los.

Segunda questão: as autoridades que governaram a Igreja

Diz-se que os documentos do Concílio foram mitificados e “descontextualizados”. Mas se é assim que aconteceu, a responsabilidade recai apenas sobre os artífices da mitificação e da descontextualização, ou também sobre a autoridade que poderia impedir tal fato e não o fez? Por que a má hermenêutica não foi suprimida? Paulo VI definiu “falsa e abusiva” certa interpretação do Concílio, mas se alguém foi removido, discriminado, perseguido, foi quem permaneceu fiel à tradição. E não falo nem de Mons. Lefebvre e nem de Mons. Castro Mayer. Penso, por exemplo, em Mons. Antônio Piolanti, talvez o maior teólogo italiano do século XX, que foi removido do cargo de Reitor da Pontifícia Universidade Lateranense. A púrpura que a ele foi negada foi concedida ao Padre Yves Congar [ndr: em 1994, por João Paulo II], que atacava violentamente a “miserável eclesiologia ultramontana da Lateranense” [25].

O Novo Catecismo nos é apresentado como um instrumento de retificação da má hermenêutica. Mas, em vinte anos de sua promulgação, a má hermenêutica continuou a desenvolver-se imperturbada. Não se percebe que, se a preocupação é salvar a suprema autoridade eclesiástica de toda responsabilidade quanto aos males do pós-Concílio, esta colocação do problema agrava o mal que quer evitar. Se, de fato, fosse verdade que o Concílio foi traído por maus intérpretes dos seus documentos, como negar a responsabilidade daquelas autoridades eclesiásticas que viram explodir o mal da má hermenêutica e não a reprimiram? Se houve má interpretação, e há ainda, se reivindicaram indevidamente os documentos conciliares para fazer coisas diversas daquilo que eles estabeleciam, de quem é a responsabilidade? Apenas dos progressistas ou é também de quem deixou que esse progressismo se desenvolvesse na Igreja sem intervir para condená-lo e reprimi-lo?

Terceira questão: o evento histórico

Se nas raízes da crise da fé não está o evento conciliar, mas apenas uma má interpretação de seus documentos, qual o juízo se deverá dar sobre o evento, considerado no seu desenvolvimento concreto, nas ideias e na psicologia dos seus protagonistas, no contexto histórico que o circundou, na mitologia que em torno dele se desenvolveu? O Concílio Vaticano II não foi apenas interpretado, mas vivido pela teologia progressista como uma transformação na história da Igreja. É possível negar que esta transformação foi realizada e que no período pós-conciliar não ocorreram mudanças radicais no interior da Igreja? O dado efetivamente objetivo é que a hermenêutica da descontinuidade, por quanto abusiva, prevaleceu sobre a hermenêutica da continuidade já durante o Concílio, caracterizando-o na sua essência.

Questões legítimas

A tese hermenêutica oficial representa uma proposta de leitura, digna da máxima atenção, ao menos por sua autoridade. Mas ela não é uma afirmação doutrinal: é uma interpretação que, como tal, sobretudo quando nos deslocamos dos documentos para os fatos, pode ser falaz. Ninguém pode dizer ao Papa que ele erra. Com que autoridade poderemos julgar o supremo Pastor da Igreja? Mas cada fiel, enquanto batizado, tem o direito de fazer questões ao Papa, porque o Vigário de Cristo tem o dever de nos confirmar na fé. E, então, coloco estas perguntas.

Se houve uma interpretação falsa e abusiva dos documentos do Concílio, de quem é a responsabilidade? Apenas dos maus hermeneutas ou, também, dos documentos que, por causa dos equívocos ou das ambiguidades, permitiram esta má leitura?

Se houve uma interpretação falsa e abusiva dos documentos do Concílio, de quem é a responsabilidade? Apenas dos maus hermeneutas ou também da autoridade que deixou de condenar com suficiente firmeza as más interpretações?

Se uma interpretação falsa e abusiva dos documentos do Concílio prevaleceu nas mídias, de quem é a responsabilidade? Apenas das mídias ou também do evento histórico que esses documentos produziram? O Concílio, enquanto evento, é estranho à crise do nosso tempo?

O evento; os documentos ou ao menos alguns documentos que este evento produziu; os homens da Igreja que promoveram este evento; e que deste evento cuidaram da aplicação e propõem a interpretação: eis os responsáveis pela crise da fé atual. Ocultá-lo seria prestar um desserviço à verdade.

[1] Bento XVI, Discurso aos participantes da plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, 27 janeiro de 2012.

[2] Bento XVI, Discurso a Cúria Romana 22 de dezembro de 2005, in AAS, 98 (2006).

[3] Henri-Irénee Marrou, O conhecimento histórico, tr. it., Il Mulino, Bolonha 1988, pp. 199-218.

[4] João XXIII, Alocução Gaudet Mater Ecclesiae de 11 de outubro de 1962, in AAS, 54 (1962), p. 792.

[5] John W. O’Malley, Que coisa aconteceu no Vaticano II, tr. it. Vita e Pensiero, Milano 2010, pp. 45-54.

[6] Ivi, p. 47. Veja-se também, sobre este ponto, Alessandro Gnocchi-Mario Palmaro, A Bela Adormecida. Porque depois do Vaticano II a Igreja entrou em crise. Porque acordará Editore, Firenze 2011.

[7] J. W. O’Malley, O que aconteceu no Vaticano II, cit., p. 51.

[8] Paulo VI, Discurso ao Seminário Lombardo em Roma, de 7 de dezembro de 1968, em Ensinamentos, vol. VI (1968), pp. 1188-1189.

[9] Paulo VI, Homília pelo nono aniversário de coroação de 29 de junho de 1972, em Ensinamentos, vol. X (1972), p. 707.

[10] Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II, Uma história nunca escrita, Lindau, Turim 2011, p. 575.

[11] Cfr. O estudo do claretiano Angelo Pardilla, Os religiosos ontem, hoje e amanhã, Editora Rogate, Roma 2007. Análogo o quadro das “religiosas”: Id., As religiosas ontem, hoje e amanhã Livraria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2008.

[12] Ralph McInerny Vaticano II. O que deu errado?, Prefácio de Massimo Introvigne, Fede e Cultura, Verona 2009.

[13] Paulo VI, Discurso ao Sacro Colégio de 23 de junho de 2012, em ensinamentos, vol. X (1972), pp. 672-673.

[14] G. Alberigo, Historia do Concilio Vaticano II, Peeters/Il Mulino, Bologna 1995-2001, 5 voll.

[15] Discurso de 18 de setembro de 2011 em um Congresso teológico em Madrid, em “Adista”, 8 de outubro 2011.

[16] Romano Amerio, Iota unum, Lindau, Torino 2009.

[17] Brunero Gherardini, Concílio Ecumênico Vaticano II. Um discurso a fazer, Casa Mariana, Frigento 2009 e Id., Um Concílio faltoso, Lindau, Torino 2011.

[18] Concilio Ecumênico Vaticano II. Um Concílio pastoral. Analise histórico-filosófico-teológico, ao cuidado de P. Stefano M. Manelli F.I. e P. Serafino M. Lanzetta F.I., Casa Mariana Editora, Frigento 2011.

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