lunes, 20 de agosto de 2012


Introdução - Como interpretar as expressões do Gênesis

Decidi apresentar este ensaio depois de constatar que muitos leitores das Escrituras Sagradas têm dificuldades para perceber que o livro do Gênesis apresenta uma teologia da criação, e que os dois modos mais usados de enfrentar esse livro impedem os leitores de descobrir a grande riqueza espiritual contida nessa teologia. 

O primeiro modo é o seguinte: não são poucos os laicos, pastores e sacerdotes que vêem o Gênesis como uma fonte de historietas para se contar. E porque persistem na falta de critérios e na inadvertência, concebem suas historietas, mesmo antepondo a elas o título “ensino bíblico” ou “estudo bíblico”, como brincadeiras se julgadas na medida da teologia bíblica. Cometemos erros lamentáveis quando consideramos esse livro como uma peça arqueológica, uma fonte de historietas ou desprezamos o significado de suas expressões. Também corremos o risco de não identificar a realidade que suas narrativas expressam quando as consideramos como peças soltas ou quando queremos chegar rápido demais a seu sentido.

O segundo modo é este: há grupos religiosos em que a compreensão dos relatos sobre as origens está muito contaminada com o criacionismo. Esta teoria da criação leva os leitores pelo caminho do racionalismo, que não é o caminho da teologia bíblica, a fim de combaterem a teoria da evolução ou tentarem harmonizar as narrativas da criação com a ciência, ou melhor, com a especulação metafísica sobre as origens do Universo, rotulada de “científica”.

Tenho a seguinte convicção: melhor do que combater a teoria da evolução com argumentos racionais, tomados por empréstimo do criacionismo, ou desviar-nos para um cientificismo, é concentrar-nos em mostrar as riquezas contidas principalmente nos valores espirituais e ideias transcendentes do Gênesis, os quais são de benefício incalculável para a existência humana. Desse modo —mostrando o que a criação é—, tornamos evidente que a teologia da criação tem algo superior a oferecer, pois a teoria da evolução e a ciência nada podem apresentar para corrigir o mal humano.

Minha intenção não é abordar a teologia da criação de forma exaustiva. É mais modesta: escolhi alguns de seus grandes temas, os que me parecem mais adequados a fim de ajudar os leitores a entender a realidade que o Gênesis apresenta e o significado de suas expressões. Finalmente, espero que descubram que esse livro é uma verdadeira caverna de Ali Babá, cujos tesouros nunca se extinguem. Ficarei satisfeito se os leitores têm a sensação que aprenderam a ver o Gênesis com novos olhos, e descobriram que o que viam era muito pouco, uma parte pequena e distorcida de seu conteúdo.

Gênesis significa “origem” ou “começo”. O primeiro livro da Bíblia recebe esse nome porque narra as origens do mundo, do gênero humano, da civilização e de Israel, o povo da Antiga Aliança. O que esse livro pretende com o retorno às primeiras origens? O que ele vai buscar no passado mais remoto? Estas perguntas nos colocam face à primeira questão que devemos enfrentar, da qual não podemos fugir: como vamos inventariar o significado de seus relatos?

A seguir, passo a enumerar os critérios que orientam nossa leitura, a fim de que a interpretação da teologia da criaçãodo Gênesis esteja de acordo com sua própria origem e intenção.

1. Tal teologia adquire seu verdadeiro sentido só quando se respeita a forma como as narrativas estão concatenadas no texto. Pois é precisamente com essa concatenação que a teologia foi formulada no Gênesis. O livro é uma obra literária magnífica. Suas histórias têm uma estrutura de caixa chinesa: a caixa maior contém outra menor, e esta outra, em um processo que, em teoria, poderia ser infinito. Cada história menor está contida dentro de outra anterior e mais ampla, e assim sucessivamente. E nessas histórias há episódios que são outras caixas chinesas. Os personagens também têm uma estrutura semelhante: eles aparecem nessas histórias como uma série de bonecas russas embutidas umas dentro das outras.

Todas as histórias menores, personagens e episódios estão contidos na história mais ampla do livro, a história das origens, que, por sua vez, é a introdução de outra que a contém, a história da salvação, que lhes parece não ser exatamente aquela que estão lendo, porém é a história central da Bíblia, e que os menos informados só conseguem adivinhar. Ou seja, são histórias encaixadas em outras; e essas histórias são saltos no tempo que impelem a história da salvação para diante.

2. Gênesis não foi escrito no vazio. Ele está situado no ambiente cultural do Antigo Oriente Médio. Foi escrito de acordo com formas literárias próprias desse ambiente. E mantém certo paralelismo com os grandes mitos sociais da região, a fim de criticar e contradizer as ideias que difundiam. Portanto, para entender as histórias que conta e suas expressões, é preciso projetá-las sobre esse fundo cultural e estabelecer um paralelismo entre elas e os mitos mais influentes da região, principalmente com os babilônicos.

Neste estudo verificaremos que as relações da teologia da criação do Gênesis com os mitos do mundo pagão são muito mais diferenciadas do que supõem os que a acusam de ser mítica. Constataremos que o Gênesis não adotou simplesmente esquemas míticos.

O que a fé israelita fez foi servir-se, de forma seletiva, de conceitos e ideias que estavam a disposição para desdobrar seus conteúdos em uma formulação completamente nova: tendo em vista a vocação de Abraão (Gn 3:16-18), apresenta às nações o único Deus criador como o Senhor da História, ao qual ninguém pode esquivar-se e do qual, ao mesmo tempo, ninguém pode dispor.

A forma pela qual esses conceitos e ideias serviram de ilustração ou ajuda linguística para a teologia da criação se verá por ocasião da análise de cada um dos temas. Então ficará claro que a relação da teologia da criação com os mitos do antigo Oriente Médio é exatamente o inverso do que dão a entender os que equiparam o conteúdo do Gênesis com os mitos.

3. Faremos justiça ao Gênesis levando a sério suas duas apreciações: a histórica e a histórico-salvífica (entenda-se esta última como “história religiosa da salvação”). Sua apreciação é fundamentalmente histórico-salvífica. Mas esta apreciação não é propriamente uma abordagem histórica que se diferencia do restante da história. É, isto sim, uma sequência de acontecimentos históricos que são caracterizados e ligados entre si apenas pelo fato de que, através deles, Deus se revelou na história e pelo fato do povo de Deus identificar-se com eles.

Ao levar a sério essas duas apreciações, constatamos que no Gênesis também há teologias encaixadas: a teologia da criação está encaixada na teologia da história, e, nesta última, o principal é a palavra relativa a Deus e à sua ação histórica. É por estas razões que a apreciação histórica do Gênesis possui um caráter confessional muito acentuado.

4. Mas a apreciação histórica não forma apenas o pano de fundo da teologia da criação. Esta não é apresentada como uma confissão abstrata dirigida ao homem. Ela tomou forma e se tornou importante no diálogo crítico com a situação histórica e na discussão sempre em diálogo concreto com o homem. Portanto, descobriremos o sentido das narrativas do Gênesis se não as separarmos do confronto com a situação histórica e do diálogo autêntico com o homem antigo.

5. Gênesis é a parte inicial de um todo. Não é por acaso que ele ocupa o primeiro lugar no conjunto de escritos que formam a Bíblia. E isso se deve a três razões principais: 1) nele estão as nascentes das grandes linhas de pensamento bíblico; 2) narra o começo de todas as coisas, começo que determina tudo o que acontece depois, inclusive o fim; 3) face à deturpação da criação existente em seu tempo, mostra, de modo magnífico, o que a criação é.

Sendo que o Gênesis é a parte inicial de um todo —a história da salvação—, a interpretação das questões vitais que expõeserá feita sempre a partir do detalhe em direção ao todo e do todo em direção ao detalhe. E sendo que a história da salvação tem a Cristo como seu fundamento e seu centro, a reflexão aqui não poderia ficar restrita ao Gênesis e deixar de lado a palavra final, decisiva daquele que é o autor e realizador de nossa fé.

O que faço nestas páginas é ressaltar o seguinte: Gênesis não é um livro conservador; pelo contrário, sua teologia foi formulada tendo em vista a transformação. Uma síntese do propósito dessa teologia pode ser esta: os povos antigos elaboravam mitos e lendas sobre as origens do mundo e do ser humano, cuja finalidade era legitimar e manter a situação vigente. Opondo-se a inovações que venham modificar a ordem social, tais mitos e lendas não oferecem possibilidade de mudança. Mas a teologia da criação do Gênesis rompe com essa tradição. Não venera o passado. Pensa na reconstrução do presente mediante a transformação profunda do modo de ser e de viver. Sua fé esplêndida no Deus criador desafia o estilo de pensamento do mito e entra em guerra contra o espírito tacanho.

Quanto às riquezas da teologia da criação, o leitor pode começar a descobri-las lendo as páginas seguintes.

I. A Questão Fundamental — A Soberania do Deus Criador


O que o Gênesis faz em primeiro lugar (capítulos 1 e 2) é que os leitores tenham um encontro com o Deus criador de todos os seres e coisas deste mundo, e logo o apresenta como o principal protagonista da história das origens.

Que este encontro aconteça logo de início é fundamental para a própria intenção do livro. Pois é só no encontro com Deus que o ser humano conhece seu criador, conhece-se a si mesmo, descobre a criação, a Natureza e a História, a ordem e a desordem do Universo e o lugar que foi designado para todos os seres e coisas.

A análise cuidadosa desses capítulos revela o seguinte: Deus é o sujeito e a criação manifesta seu poder superior. Suas narrativas englobam tanto a criação do céu e da terra por Deus, como também o senhorio de Deus sobre a criação.

A estrutura de 1:1 a 2:3 revela claramente que é um hino. Sua forma é o louvor descritivo. A função desse "Hino da Criação" é exaltar o poder superior de Deus na criação; poder que se impõem ao mundo e que sempre está lutando contra várias contestações.

Esbocemos uma explicação sobre qual é a intenção desses dois capítulos iniciais.
Certamente não é provar a existência de Deus. Conforme o caminho seguido pelo espírito dos que desconhecem a Deus, para saber se ele existe pretendem ir do conhecido ao desconhecido por indução, dedução ou analogia. Mas mediante a adoção desse processo lógico e psicológico colocam a criação na frente do Criador e não produzem outra coisa senão glorificar o juízo e o raciocínio puramente humanos. A narrativa não supõe primeiro a verdade do mundo para depois perguntar se Deus existe. Começa primeiro por Deus, contrariando a lógica dos néscios e insensatos.


Não pretende informar às pessoas que houve uma criação, para que elas "creiam" na criação. Tampouco deseja especular sobre como foi o processo criativo para responder à curiosidade das pessoas. A mentalidade do Israel bíblico não era dada à especulação. Gênesis 1 e 2 não foram elaborados apenas para informar ou satisfazer a simples curiosidade sobre o que Israel pensava, filosófica ou cientificamente, sobre as origens do mundo.


Todos esses rumos eram sumariamente rejeitados pelos autores das Escrituras, porque, para eles, pretender provar a existência de Deus pela criação, tratar de incutir fé na criação e fornecer informações sobre o processo da criação são todas maneiras de conduzir o assunto colocando a criação em primeiro plano. E isto não é lógico, pois não se pode falar em criação quando não há Criador. A criação só é reconhecida como tal quando se conhece o Criador. Por isso, o Criador deve ocupar sempre o primeiro plano. Nas Escrituras, dar mais importância à criação que ao Criador é a própria idolatria. E as Escrituras são coerentes com si mesmas.


A criação está aí. É tão incontestável que, tanto Israel como os demais povos antigos, jamais duvidaram da existência de divindade criadora do ser humano e do mundo. Evidentemente, cada povo acreditava na divindade e na criação a seu próprio modo. Portanto, a intenção principal de Gênesis 1 e 2 não é informar que houve um Criador e uma criação.

Nos capítulos 1 e 2, Gênesis lança o fundamento teológico de suas narrativas, que podemos resumir assim: A compreensão da realidade do mundo e do homem depende da certificação da realidade de Deus. O que abordaremos nos seguintes capítulos deste ensaio. Juntamente com essa compreensão, esses capítulos enfrentam o seguinte problema: Em geral, a humanidade não se quer comprometer com o verdadeiro Deus; vivencia e segue forças pseudo divinas entronizadas pelas elites do mundo.

Agora nossa atenção se volta para a questão fundamental: a soberania que pertence a Deus desde a eternidade; porém, foi contestada e rejeitada pelos incrédulos.

O incrédulo, segundo as Escrituras, é aquele que não duvida da existência de Deus, mas o considera inoperante: não age, não exerce domínio, nem julga (ver, por exemplo, Salmos 12:4; 64:5 e 94:7). Na base da incredulidade está a seguinte crença: Deus criou tudo, mas deixou o homem por conta própria no mundo; mantém-se afastado num céu distante, alheio às ações da humanidade. Ou seja, no Gênesis começa a investida das Escrituras contra a descrença na soberania divina. Esta descrença existia nos tempos antigos e existe ainda hoje em formas mais requintadas, como as teorias que pretendem que o Universo foi criado por forças impessoais e a transferência dos atributos de Deus para a natureza, que constatamos no naturalismo.


A intenção das narrativas da criação é mostrar que absolutamente tudo procede de Deus e absolutamente tudo está subordinado a ele. Nesses capítulos, o poder de Deus sobre o mundo e a vida é irrestrito. Tudo, especialmente o homem, está subordinado àquele que criou o mundo e mantém a vida por puro amor. Onde havia vacuidade, informidade e escuridão, por virtude do poder cósmico de Deus, surgem o Céu e a Terra, o marco da vida do ser humano. E quando este chega ao mundo pela criação, encontra tudo pronto. Céu, Terra, seres vivos e coisas são criação de Deus. O próprio homem é obra de Deus. Toda realidade criada saiu da vacuidade informe e escura e é sustentada por Deus sobre essa mesma vacuidade. (Segundo uma concepção muito antiga, a vacuidade é o lugar onde se encontra o que ainda não foi criado.) Pode-se expressar com mais força o poder único de Deus?


A credenda não é "creio na criação", porque ela pode conduzir por um perigoso desvio: transferir os atributos de Deus para a natureza, submeter-se à natureza e adorar a criatura em vez do Criador como faziam os povos antigos. Ao concentra-se em Deus, o texto coloca já no começo a fé em sua expressão mais fundamental: "creio no Deus único, criador de tudo quanto existe". E essa fé se expressa mediante a aceitação livre e amorável de sua soberania, isto é, comprometer-se, engajar-se, ligar-se a Deus por uma vontade comum.




Soberania incontestável


Gênesis 1 e 2 destacam três aspectos da soberania de Deus, os quais a tornam incontestável:

1. Senhor da vida. Nesses capítulos, a vida é um dom de Deus; sem dúvida, o mais precioso de todos. Ela é possível porque Deus é o Deus vivo e o Deus da vida. Justamente, porque Deus é vida e dá a vida, ele não é um ser passivo, habitante de um céu distante. Por ser vivo, Deus é essencialmente ativo: cria o Universo e o homem, comunica-se com suas criaturas, dirige, intervém na história.

A narrativa procura tornar isso mais evidente na criação do homem. O primeiro ser humano foi formado por Deus com base em elementos idênticos a muitos dos que constituem o pó da terra do campo. Ali está Adão, pronto, perfeito nos mínimos detalhes. Já podia ser chamado "homem". Porém, faltava-lhe o mais importante — a vida. Esta ele não poderia obter por si mesmo, da natureza, ou de qualquer outro ser criado. Recebe-a do único que poderia doá-la — de Deus. Só de posse do sopro divino é que Adão podia ser qualificado como "ser vivente".

O Deus criador é o Senhor da vida. Outorga-a a todos os seres vivos. Promete-a em sua plenitude aos homens que o amam e acatam sua soberania de amor. Aquilo que dá sustentação ao ser do homem não vem dele, mas de Deus. Há um ponto mais forte do que a vida para o assentamento da soberania divina?

2. Senhor do ser humano. Como o Céu, a Terra, as plantas e os animais foram todos criados com base no homem e para o homem, as narrativas da criação atingem seu ponto culminante ao tratar a soberania de Deus sobre o ser humano. Vale-se de uma série de atos de soberania divina para expressar que o Deus criador é o único e legítimo Senhor do ser humano.

Começa estabelecendo um contraste entre a criação do ser humano e a criação do mundo. Este foi chamado à existência: "E disse Deus haja... (tal coisa), e houve... (tal coisa)”. Mas o homem foi feito por Deus: "E disse Deus: façamos o homem..."; e "formou Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida". Tais expressões sugerem um envolvimento mais íntimo de Deus na criação do ser humano, como se o criador o tivesse feito com suas próprias mãos, com toda dedicação e carinho (ver Salmos 119:73). O processo teve duas etapas. Primeiro Deus planejou o ser humano, depois o tornou realidade. O ser humano não deve ter dúvidas quanto a ser uma criatura de Deus e quanto a dever obediência a Deus.

Se bem que a narração, por um lado, frise a solidariedade entre o ser humano e a natureza, por outro lado, deixa bem claro que o homem está sujeito a um Deus vivo e pessoal, e não à natureza. Faz uma distinção entre Deus e a natureza — um é o Criador, a outra é a criatura. E mostra que todos os elementos da natureza estão submetidos a Deus, inclusive o sol e a lua, adorados como divindades por alguns povos relacionados com Israel.

Como Senhor do homem, Deus lança a base para que este siga um padrão rítmico de ação semanal: trabalhar seis dias e descansar um como Deus fez na criação (Gênesis 2:2 e 3).

E, ainda, num ato de soberania da mais alta expressão, Deus fixa os limites: o ser humano tem domínio sobre o animal e Deus tem domínio sobre o homem (Gênesis 1:28). A proibição de tocar ou comer a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, coloca a vontade divina como superior à vontade humana. Esta deve estar submetida àquela. O ser humano tem plena liberdade dentro do campo do bem. Mas está proibido de entrar no terreno do mal. O verdadeiro lugar do homem é dentro desses limites. Fora deles sua vida e sua ação não tem sentido (Gênesis 2:16 e 17).

3. Senhor da história. Para o Gênesis não há dúvidas: é Deus e não o homem quem começa a história e a dirige. Como muito bem destaca Gerhard von Rad em sua Teologia do Antigo Testamento, a criação é a primeira obra de Deus dentro do tempo. Ela inicia a história. Mas ela não está só, outras obras do Deus criador vão segui-la dentro do tempo e da história. Deus não pode ser plenamente Senhor do homem sem ser também Senhor da história. Soberania de Deus sobre o homem e soberania de Deus na história andam juntas. Como diz Paul Ricoeur (História e Verdade), devido a ser o soberano do homem, Deus é também o soberano da história.

Nos capítulos seguintes (3 a 50), Gênesis exalta a Deus não só como criador do mundo, mas também como senhor da história. Mais adiante veremos que ambas afirmações se juntam para explicar a eleição de Israel.


Soberania que espera consentimento

Para o Gênesis, assim como nas demais Escrituras, a essência de Deus é ser ele vivo, criador e soberano. Ele quer a vida do homem. E porque sua soberania é de amor, ele quer ser amado pelo homem. Seu desígnio agora é salvar a criação de seu rompimento que aconteceu em tempos primordiais e é a causa de todo sofrimento, da destruição e da morte que imperam neste mundo. Segundo Gênesis 3, a origem do rompimento da criação é o rompimento do homem com seu Criador. Começou quando o homem não mais reconheceu a soberania divina, e se transformou em um antagonista do Criador. O primeiro requisito para resgatar o homem e seu mundo das consequências terríveis de tal rompimento é que ele volte para o Criador.

As narrativas sobre o Deus criador têm como pano de fundo a existência de uma humanidade despedaçada por seus antagonismos, cuja matriz é uma questão universal que ainda não foi resolvida: a tendência da humanidade de não consentir com a soberania divina. Eis alguns exemplos:

O antagonismo erguido entre os indivíduos por suas inclinações passionais: cada um pensando ter condições, como qualquer outro, de decidir o que é justo ou injusto; de governar a si próprio; querendo instruções e leis gerais para a sua conservação, mas está propenso a isentar-se delas em segredo.

O antagonismo erguido entre os povos por suas más disposições, constituindo cada um obstáculo para os outros.

O antagonismo erguido pelo poder político, que se propõe garantir pela força a segurança externa e a concórdia interna. Mas —isto é muitas vezes verdade—, malgrado da maioria, faz a guerra e se vale do poder para dominar a comunidade política.

Antagonismos como esses resultam numa humanidade constituída por indivíduos isolados, na qual cada um se vê contra todos; num mundo em pedaços onde o conflito entre indivíduos e povos é onipresente, pois nele impera a desconfiança, o medo do outro, os interesses particulares e ninguém está seguro.

No Gênesis, o poder de Deus é menos aquilo que domina as pessoas, que aquilo que as cria; e mais importante que atribuir a Deus um poder incomensurável é o fato de todos sentirem a necessidade de sua soberania, de darem a ela seu consentimento. É por aí que o homem deve começar a fim de curar suas doenças, resolver seus conflitos e superar as ambiguidades e contradições de sua existência.

Tal conceito de soberania divina é uma novidade no mundo antigo. Significa uma profunda mudança na forma de pensar a humanidade e as sociedades que a conformam. Porque Deus é o criador da humanidade, ele exige que os homens vivam em fraternidade. Tal conceito destrói os fundamentos de toda ideia que separa e isola os seres humanos e gera antagonismos entre eles, como o nacionalismo, o despotismo, a ideia de uma hierarquia natural (segundo a sabedoria, a nobreza, a riqueza...) e toda justificativa para uma sociedade de castas.

O Gênesis coloca o consentimento à soberania de Deus, que quer a vida do ser humano, em primeiro lugar na estrutura dada ao material narrativo, porque tal consentimento comparece na base de uma nova atitude de vida, cujo embrião é Israel, o povo da Antiga Aliança. É no ensino de Jesus que esse fundamento posto à vida ocupa o lugar mais importante. Para ele a questão primária e decisiva consiste em buscar em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça (Mateus 6:33). Lembre isto: não existe reino sem soberania.

Mas o ensino de Jesus sobre a soberania de Deus contrasta com a crença generalizada no mundo antigo (inclusive com a de Israel) em divindades que exercem sua soberania como monarcas ou imperadores sentados em seus tronos, impondo sua vontade a todos, determinando tudo mediante leis imutáveis, pouco se importando com as pessoas. Jesus não pensa em Deus como um rei. Prefere usar uma imagem exclusiva: a de um pai amoroso. Pois a imagem do Pai celestial expressa melhor a soberania de Deus: é uma soberania de amor, muito diferente da exercida pelos reis, já que não se impõe pela força e não se vale da coerção, mas tem como mira a vida do homem.

E para você, leitor, o que é mais fundamental e decisivo em sua vida? É o que Jesus colocou como tal, ou é outra coisa? Você se relaciona com Deus como se ele fosse um monarca legislador que exige a guarda de suas leis, ou se relaciona com um Pai celestial amoroso, a cujo amor deve corresponder com todo seu entendimento, com toda sua alma e com toda sua força? Este é o consentimento que Deus espera que nós demos a sua soberania.

* * *
Adendo - A interpretação literal das narrativas da criação não é confiável

E assim é porque a interpretação literal não considera elementos essenciais, estranhos à cultura ocidental contemporânea, que foram usados na formulação desses relatos. Esta é a falha de muitos leitores superficiais do Gênesis, entre os quais estão aqueles que, em nome da ciência, desprezam tais relatos e até zombam deles. Ao eludir a exegese profunda e compreensiva, plasmada em princípios normativos, a interpretação literal passa por alto antigos elementos judaicos, dos quais passo a mencionar cinco, cuja consideração me parece indispensável a fim de apurar com exatidão a mais rigorosa o que essas narrativas de considerável antiguidade querem dizer. 

Primeiro elemento: usa uma linguagem que trata de expressar o transcendente. A questão de fundo sobre como interpretar as narrativas da criação é a seguinte: Como tratar a transcendência? Como expressar o transcendente - o impenetrável, invisível e inexplicável? A transcendência está fora do campo da ciência materialista e determinista; a finalidade desta não é pesquisar e explicar o transcendente; por isso, não possui uma linguagem que o expresse.

Caso nos atenhamos exclusivamente ao método científico, o transcendente não pode ser conservado. Toda a experiência histórica da humanidade com o transcendente será ignorada. Em vez de uma verdadeira manifestação da consciência de transcendência, o transcendente será esquecido pelos seguidores da ciência materialista e determinista, enquanto a maioria das pessoas permanecerá no nível de uma consciência dividida entre o material que pode ser explicado mediante o método científico e o transcendente que a ciência materialista e determinista recusa até mesmo que seja expressado, combatendo o pensamento teológico e o pensamento mítico, que se ocupam da transcendência e, com linguagem própria, tratam de expressar o transcendente.

A pesar de suas diferenças, tanto o mito como a teologia usam uma linguagem comum para expressar o transcendente com relação ao histórico e ao mundo material: a dialética natural de transcendência, cujas imagens pertencem ao mundo do subconsciente. O homem ocidental contemporâneo, submetido ao totalitarismo científico (a ciência materialista e determinista foi imposta pela educação ocidental em todos os centros acadêmicos), não consegue entender as figuras do mito ou as imagens da teologia bíblica; geralmente as interpreta como especulação imaginária. Enquanto em certos círculos religiosos, tais imagens são vistas como formulações dogmáticas. Nenhuma destas interpretações chega a uma visualização interior da essência da figura do mito ou da imagem teológica.

Para o pensamento moderno, cada vez mais esvaziado de transcendência, resulta impossível chegar à essência do que as imagens teológicas dos escritores bíblicos querem realmente dizer expressando, em um contexto histórico e histórico-salvífico, a relação Deus-ser humano-mundo no Antigo Testamento, e a relação ainda mais complexa, devido ao surgimento de novos personagens, Deus-Cristo-Espírito-ser humano-mundo no Novo Testamento. Relações que são desdobradas em outras, como Deus-ser humano, Deus-mundo, ser humano-mundo, Deus-Cristo, Cristo-Espírito, Cristo-ser humano. Despir a teologia bíblica da linguagem teológica que, para alguns, parece mítica significa impedi-la de lidar com transcendência, de expressar o transcendente.

No intento de expressar uma experiência intemporal muito além dos cálculos dos historiadores e cientistas, as narrativas do Gênesis foram formuladas, simultaneamente com a dialética natural de transcendência, com os seguintes elementos judaicos: a numerologia, a música, a cosmogonia e as tabelas genealógicas. A partir de influências egípcias, sírias e fenícias, o sistema linguístico hebraico alcançou um alto grau de desenvolvimento, com associações inigualáveis de letras e de números.

No uso do alfabeto hebraico – que podia expressar tanto o conhecimento matemático como o reino psicológico de arquétipos qualitativos e quantitativos – os sábios hebreus podiam dramatizar e integrar verdades universais com diferentes níveis de consciência de modo que uma letra ou combinação de letras indicava certos estágios de vida, de entendimento espiritual, de cosmologia no sentido original de um universo ordenado e até de relações musicais. Na realidade, tudo isto servia para a instrução da alma, como um programa de computador de formas sagradas. De fato, encontramos tais elementos no Gênesis, em toda a Escritura e de maneira densa nos apocalipses.

Segundo elemento: a numerologia. O número 7 é um dos mais importantes da metamatemática judaica. Na Escritura, esta cifra indica primordialmente totalidade ou a plenitude, ou seja, um máximo, um número limite, muito mais do que um número real. Em Gênesis 1:1 a 2:3 o número sete exprime a plenitude e a totalidade da obra criadora divina.

Por outro lado, a palavra “dias” na Escritura pode significar dias de 24 horas, anos ou longos períodos. Há os que interpretam os “dias” da criação com base na afirmação de Salmos 90:4, citada em 2 Pedro 3:8, “um dia é para o Senhor como mil anos, e mil anos como um dia”. Portanto, os “sete dias” da criação podem ser interpretados como dias de 24 horas ou longos períodos. Más a prudência exige não dogmatizar sobre o tempo de duração da criação. Também convém notar o seguinte: o verso 2 sugere que a terra já existia antes “sem forma e vazia”, coberta por um vasto oceano e mergulhada nas trevas. O texto não revela há quanto tempo a terra existia assim. O que realmente importa é o seguinte: a descrição do que ocorre nos “sete dias” nos mostra a Deus agindo como criador a fim de tornar a vida possível onde antes não era.

Outro exemplo é o número 12, que se refere ao povo de Deus. Encontramos o uso de doze discípulos coordenando com as doze tribos do Israel espiritual, as doze joias da Jerusalém celestial como uma verossimilitude dos doze poderes dos Urim e Thummim, e a chave direta de 144.000 eleitos (144.000 é o resultado de 12 x 12 x 1.000).

Terceiro elemento: a música. O "Hino da Criação" de Gênesis 1:1-2:3 é uma partitura musical para a instrução da alma, uma descrição poética em movimento rítmico, cadenciado e majestoso das etapas sucessivas da criação; etapas que seguem em uma progressão ordenada, expressa no molde bíblico, tão frequente, do número “sete”. Ali o louvor descritivo adquire forma poética. Deus é exaltado como criador do mudo a fim de indicar a comunhão intrínseca entre criador e criatura.

O “Hino da Criação” é um dos tantos hinos usados no culto do Israel antigo. E não é o primeiro e último hino a ser citado no texto bíblico. Há outros, pois os escritores bíblicos consideram que certos hinos são de extrema eficácia para comunicar o caráter confessional de suas afirmações. O apóstolo Paulo, por exemplo, cita hinos crísticos da Igreja primitiva em suas epístolas (Filipenses 2:5-11; Colossenses 1:13-20). Valendo-se dos recursos da poesia hebraica, Gênesis 1:1-2:3 quer dizer que o mundo nasceu como um hino que expressa constantemente a glória do Criador.

Construída com frases fortes, vigorosas, enérgicas e claras, essa narrativa poética nos surpreende com quanta informação é transmitida através de um pequeno número de expressões breves. Ao mesmo tempo em que alçam o relato a um nível superior, essas frases que obviamente foram trabalhadas, revistas e polidas para transformá-las em um texto denso, fazem que a ação criadora de Deus se mova tão rapidamente que é preciso ler cada palavra simplesmente para acompanhar o que está acontecendo.

A escolha das palavras, os ritmos e as ligeiras repetições para efeito de ênfase, como “Disse Deus: haja… e houve…” e suas variantes, visam salientar os aspectos essenciais da criação: “céus e terra” foram criados pelo poder cósmico da palavra de Deus e também a beleza e a bondade do mundo original. Nada mais o “Hino da Criação” ousa dizer sobre como foi o processo da criação. Pois os escritores bíblicos não agem como os tolos e charlatães que pensam que sabem e compreendem tudo. E andar fingindo saber e compreender tudo resulta em incoerência e erros.

Quarto elemento: a cosmogonia judaica da antiguidade. Esta cosmogonia, que concebe o Universo como uma casa de três andares, torna evidente que o ensino do Antigo Testamento sobre a criação se fundamenta em pressupostos hoje vencidos. Sobre esta cosmogonia leia: Pressupostos Vencidos que Encontramos no Ensino do Antigo Testamento Sobre a Criação. Contudo, mesmo quando as narrativas da criação são atualizadas e passam a ser compreendidas de acordo com o conhecimento que temos hoje sobre o Universo e sua vastidão, o testemunho que elas oferecem permanece e é fortalecido: a glória e o poder soberano do Deus Criador aumentam consideravelmente, e a fé nele passa a ter um fundamento o mais amplo possível.
Quinto elemento: as tabelas genealógicas. No Gênesis encontramos dez tabelas de gerações: as gerações dos céus e da terra (2:4 a 4:26), as gerações de Adão (5:1 a 6:8), as gerações de Noé (6:9 a 9:28), as gerações de Sem (11:10-26), as gerações da terra (11:27 a 25:11), as gerações de Ismael (25:12-18), as gerações de Isaque (25:19 a 35:29), as gerações de Esaú (36:1-43), as gerações de Jacó (37:2 a 50:26).
O mero uso no Gênesis de “tabelas genealógicas precisas” articulando uma certa ordem de números e de gerações, um conjunto preordenado de condições históricas e biológicas, não serve para se estabelecer a data da criação. A intenção é outra: com base em numerologia e em argumentos genealógicos elas querem mostrar que a história da eleição é o capítulo mais importante da história da salvação. Veja os diagramas da história da salvação e da história da eleição em A Interpretação Tipológica. O uso das tabelas genealógicas nos Evangelhos reflete a disputa acirrada entre sábios judeus e cristãos acerca do verdadeiro Messias.
A interpretação literal não é confiável, pois não permite uma interpretação honesta e criteriosa das narrativas da criação. Devido a não considerar cuidadosamente os elementos antes mencionados, ela não consegue descobrir o que tais narrativas querem realmente dizer. A pobreza dessa interpretação não faz outra coisa senão servir de argumento para aqueles que aceitaram a ciência materialista e determinista como única opção válida para substituir as “crenças, mitos e superstições da religião” por uma versão puramente material e determinista da realidade; versão sem religião, esvaziada de Deus e de consciência de transcendência.
Constata-se que o reconhecimento da soberania de Deus é uma questão atual. Jamais a soberania de Deus foi tão combatida como é hoje nos círculos científicos e acadêmicos. Por isso, ela se impõe como uma questão que deve receber uma atenção especial por parte dos estudiosos e dos pregadores honestos e criteriosos. Não é sem motivo que, na Escritura, ela aparece como a questão fundamental.

II. O Senhor da Vida - Uma Lição de Vida

Na teologia da criação, o Deus criador é também o Senhor da vida, isto é, aquele que tem completo domínio sobre a vida e exerce sua soberania por meio dela. Ele é o Senhor da vida porque é o Deus vivo e o Deus que dá a vida a todos os seres deste mundo. Para essa teologia, a vida não é fenômeno natural, mas dádiva milagrosamente preservada pelo próprio Deus. O encontro com o Senhor da vida resulta em uma lição de vida, que nos faz refletir sobre o prodígio de estar vivo e de viver.


O Senhor da vida

Gênesis começa assim: “No princípio criou Deus o Céu e aTerra”. Esta primeira frase introdutória não somente estabelece o tom, mas também sintetiza o essencial sobre narrativa. O verbo "criar" que aparece nela é uma traduçãodo verbo bara', empregado nas Escrituras hebraicasespecificamente para referir-se ao poder criador de Deus.Esse verbo nunca é usado para descrever qualquer açãocriadora do ser humano. A sua colocação logo no começoconstitui uma espécie de advertência: "Encare o poder criador de Deus com humildade e respeito, pois é completamente diferente da capacidade criativa do ser humano. Trata-se de um poder cósmico, o único capaz degerar e sustentar a vida”.

Esse recado é importante para todos, porque a gente sempretem a tendência de atribuir a Deus forma, ações e atributos humanos. É especialmente importante para os cientistas e ostecnólogos, principalmente para os físicos, que imaginam que, pelo conhecimento e a capacidade que adquiriram (estudandoa criação!), podem dispensar a Deus. Quando contemplamos a natureza e o Universo perdemos as ilusões arrogantes, poispercebemos que a inteligência e o poder do homem sãopequeninos se comparados com a inteligência e o poder deDeus.

Mas qual seria o principal motivo para se encarar o poder criador de Deus com humildade e respeito? É a diferençaentre o que Deus cria e o que o homem inventa. Vejamosalguns exemplos.

Primeiro, uma comparação entre as células e os laboratóriosde química. As células são como minúsculos laboratórios vivos especializados em sintetizar certas substâncias químicasnecessárias à manutenção da vida. Elas conseguem produzirem seu reduzidíssimo espaço interno e em tempo recordediversas substâncias complexas ao mesmo tempo. E issodeixa abismados os químicos porque eles conseguem produzirapenas um único produto químico de cada vez, trabalhandomuitas horas, em seus enormes laboratórios.

Outro exemplo é a semente. Tão pequena, ela contém não o embrião de uma planta —podendo ser uma gigantesca ecentenária árvore—, mas também todas as instruções para comandar, entre outros, o nascimento e o crescimento do vegetal, determinando-lhe o tipo de tronco, casca, folhas, flores, frutos, o tamanho, a época de florir e produzir frutos, os mecanismos de defesa e restauração e a duração de seuciclo de vida. Ou seja, tudo sobre a planta encontra-se no minúsculo espaço da semente.

Imaginemos ser possível construir um computador para fazero que a semente faz. Teria que ser uma máquina enorme ecom uma potência extraordinária. Consumiria milhões de dólares e anos de pesquisa para construí-la e programá-la afim de realizar tal função. Posso assegurar-lhe isto: é maisfácil para um computador controlar o vôo de um fogueteespacial do que controlar o desenvolvimento de uma planta desde que nasce até o fim de seu ciclo de vida.

Comparemos agora a parafernália eletrônica e mecânica que controla o voo de um avião com o minúsculo cérebro de umpássaro. Mesmo com todo seu sofisticado equipamento, oavião é incapaz de realizar, entre muitas coisas mais, as manobras que um pássaro realiza com extrema facilidade, como pousar e alçar voo de um galho de árvore.

Esses exemplos são suficientes para mostrar a diferençaentre o que Deus cria e o homem inventa: Deus tem completodomínio da tecnologia da vida — cria e sustenta seres vivos;enquanto o homem tem domínio de uma tecnologia que lhepermite inventar coisas, manipulando princípios e materiaisobtidos na criação.

Jamais conheceremos o Senhor da vida se não sabemos o que é a vida. Pois atrás da vida está Deus, a única potencia criadora capaz de trazer a existência uma nova realidade.


As propriedades da vida

O que é vida?  Deus sabe! Ninguém pode pegar um poucode vida na palma da mão e dizer: “Isto é vida”. Essamaravilha das maravilhas é algo imaterial.  é possívelconhecê-la, indiretamente e em parte, pela maneira como semanifesta nos seres vivos. Quando observamos atentamente o espetáculo contínuo e grandioso da vida, percebemos umpouco de suas propriedades. Segue um resumo das principais.

1. Única. Procure onde quiser, por todas partes, e não vaiencontrar nada igual à vida, porque ela é única. Não existe nada comparável a ela. Nada pode produzi-la a não ser elamesma. Não passa de pura ficção sugerir que a eletricidade,ou qualquer outra força da natureza, pode gerá-la, comofazem algumas teorias sobre a origem da vida. Admitir issosignifica banalizar a vida, ignorar que ela é única e sua fonteé Deus. Do ponto de vista científico, trata-se de uma imaginação tão monstruosa como Frankenstein, que, naficção literária, adquiriu vida mediante uma descarga elétrica. O oposto é verdadeiro: a vida pode gerar eletricidade, como acontece, por exemplo, no cérebro.

Porque a vida é única, nada pode substitui-la. Portanto, nãopodemos colocar outro fundamento a nossa existência (comodinheiro, status, poder, fama...) senão o que  está postopelo Criador: a própria vida, isto é, viver com plenitude eintensidade.

2. Transcendente. O uso desta expressão indicacompreender bem a impossibilidade de definir uma realidadetão misteriosa e, ao mesmo tempo, tão evidente como a vida.Ela está acima de como a imaginamos e é sempre muito, masmuito mais que formas de existência particulares ou coletivasque adotamos. Devido a transcender eternamente nossasformas de existência, a vida (melhor Deus através da vida) nos desafia constantemente a encontrar novas e melhoresformas nas quais ela possa se consubstanciaradequadamente. Acredito que daí provém o desejo, existenteem todos nós e nunca satisfeito, de conquistar umaexistência melhor que a presente.

Por isso, o incessante fluxo da vida tem sido constantemente modificado em sua maneira de consubstanciar-se em formas de existência e estruturas. No transcurso da história, observamos o seguinte: formas de existência sendosuperadas por outras formas. Apesar de todos os avanços,hoje não é diferente. As pessoas e as sociedades modernasestão sempre desejando melhorar a forma de vida. Pois a vida está sempre a nos dizer: "Eu sou mais do que vocêsimaginam". O desafio que ela constantemente nos propõe é este: aprender novamente a viver.

A vida estava aqui muito antes de chegarmos e permaneceráaqui depois de partirmos. Contudo, enquanto permanecermosaqui, ela residirá em nós e agirá continuamente a nosso favor, sustentando nosso ser de modo prodigioso, até completarmoso ciclo por ela determinado.

3. Inteligência. Em suas manifestações, a vida revela umainteligência elevada e sem limites, expressa em cada fibra, célula, órgão, sistema e função dos seres vivos e naadequação a seus respectivos ambientes. Graças a essainteligência descomunal, a vida conhece minuciosamente cada detalhe dos seres vivos e os comanda. Por isso, é a única capaz de sustentar-lhes o ser.

Nossa inteligência é uma gota desse oceano, uma dádiva deDeus através da vida. Nosso grande erro é não confiar na vida. Consequentemente, não a fazemos comparecer na base de todas nossas ações (da educação, do trabalho, da política, da economia...). Quando nos separamos da vida,passamos a pensar de modo estúpido e a vivermarginalmente.

4. Poder. A força da vida é incomensurável. Como pode estarem todas as partes ao mesmo tempo e manifestar-se emtantas formas diferentes? E em cada forma, como pode gerartantos indivíduos diferentes? De fato, não existem doisindivíduos iguais; cada um é único; no passado não houve, no presente não há e no futuro não haverá outro igual a ele.Pense na vida sustentando, neste momento, todos os seres vivos do mundo. Você ficará estarrecido com a dimensão daforça ativa que ela libera continuamente para sustentá-los. Atudo isso, acrescente o seguinte: imagine o poder que a vidajá liberou no passado e ainda vai liberar no futuro, durantemilênios. É fantástico. A força da vida é a maior força do mundo que está permanentemente à nossa disposição. Aquestão é: como a encaramos? O que fazemos com ela?

Podemos esconder e até negar que essa força reside em nós,age em nosso favor e por nosso meio. Não obstante, elacontinua onde deveria estar, cumprindo fielmente sua missão. Por que não se aliar a ela?

5. Harmonia. Ficamos fascinados com a harmoniaestabelecida pela vida em cada organismo, entre a enormediversidade de seres vivos, na estonteante complexidade defunções destes e em seus ambientes próprios. Nosso corpoestá formado por bilhões de células agrupadas em fibras,órgãos e sistemas, com funções específicas, todastrabalhando em perfeita harmonia. Em nosso próprioorganismo, a vida nos mostra a chave da harmonia: consisteem concentrar-se num projeto comum, tirando o máximoproveito da diversidade de recursos.

É essa harmonia que temos que reproduzir constantementeem todas as áreas de nossa vida, a fim de conseguirmos bonsresultados. Por exemplo, se você tem a habilidade deestabelecer harmonia com as pessoas certas, formará comelas um poderoso vínculo comum e um relacionamento decompreensão. Conseguirá uma soma de recursos —os delascom os seus—, isto é, um fortalecimento mútuo. Será capaz de preencher as necessidades delas e elas serão capazes de preencher as suas. Se  harmonia em sua família, teráimportante apoio de retaguarda para estudar, trabalhar e fixarmetas. Vivendo em harmonia com o meio ambiente, estarácontribuindo a fim de que o mundo seja melhor para todos.

6. Amor. Surpreso? Você não esperava encontrar este termoaqui? Eu entendo, pois o amor é o atributo menoscompreendido da vida. Mesmo assim, é o principal. Fomoscriados por puro amor e vivemos para amar. Através da vida,Deus derramou o amor em nós e a nossa volta. Nosso grande erro é tolher esse amor. Viver para amar significa atingir onível mais elevado da existência. Há uma grande diferençaentre a pessoa que ama e a que não, entre o trabalho realizado com amor e o realizado apenas por necessidade ouobrigação. As pessoas mais produtivas e felizes são as queamam mais.

Viver sem amor não é viver. A falta de amor descaracteriza a vida, diminui o potencial e abre as portas para todo tipo depadecimento. Qual destes médicos você escolheria: o que trata seus pacientes com amor ou o que trata simplesmentede maneira profissional? O melhor é sempre o que é feito comamor. Sem amor, uma criança não consegue crescer nemdesenvolver uma personalidade saudável e normal. Torna-sedoente, apática, triste e sem brilho. Uma criança precisa viver mergulhada no amor. Quando isso acontece,  pelosdezesseis anos de idade, ela estará pronta. Um adulto semamor torna-se uma pessoa confusa, perdida no mundo,insatisfeita, agressiva e de relacionamento difícil.

7. Generosidade. O fluxo da vida age do mesmo modo queDeus. Nas palavras de Jesus, o Pai celestial faz chover ou sairo sol sobre todos, sem fazer distinção de pessoas. A vidatambém não faz distinção de pessoas. Oferece a todos suasdádivas por igual. Não se importa se estamos alegres outristes, se somos gordos ou magros, ricos ou pobres, lindosou feios, cultos ou ignorantes. Não se importa com raça,religião, nacionalidade ou credo político. Se uns extraem maise outros menos da vida, é porque cada indivíduo define aporção dos benefícios que está disposto a receber. Aquelesque vivem à margem da vida costumam culpá-la por suascarências. Na realidade, fazem isso para proteger-se dasperguntas reais: que tipo de existência eu decidi levar? Quanto estou disposto a extrair da vida?

Ninguém de bom senso seria capaz de questionar agenerosidade da vida. Dependemos dela por completo, pois é o elemento fora do qual nós não poderíamos viver. Sem ela, somos nada e nada podemos. Neste mundo não existe nadamais generoso que a vida. Constatamos observando anatureza que a vida come a si mesma para continuar vivendo. Este é também nosso caso. Através de outros seres vivos, a vida se doa graciosamente para sustentar nossa existência. Alimentamo-nos de seres vivos e seus produtos, como frutas, verduras, sementes, leite, ovos, carne, aves e peixes. Ela nosfornece até os micro-organismos amigáveis que vivem emnosso intestino e nos ajudam a aproveitar os alimentos. De seres vivos obtemos fibras para o vestuário, a útil madeira eum sem número de substâncias para fabricar remédios eoutros produtos.

Em Jesus Cristo encontramos a mesma generosidade da vida,porém numa dádiva suprema. Ele disse Eu sou a vida”, e deusua vida em benefício da nossa. Antes, ensinou que precisamos alimentar-nos de sua vida para continuarmosvivendo. Não é isso que fazemos quando, na Eucaristia ouSanta Ceia, bebemos o símbolo de seu sangue derramado e comemos o símbolo de seu corpo sacrificado por nós na cruz?

Eu imagino o que o leitor pode estar dizendo agora: "Essaspropriedades da vida parecem atributos divinos". E eurespondo: são mesmo. Todas as religiões reconhecem que a vida é um dom de Deus. No Gênesis, ela é apresentada como o “sopro de Deus”, como algo de Deus que reside em nós.Portanto, não é estranho que ela tenha tais atributos. Nas Escrituras, ela está totalmente identificada com Deus e até se confunde com ele, tanto que a ação vivificante divina foipersonificada no Espírito de Deus ou Espírito Santo. E essapersonificação tem sentido, pois os atributos da vida nãodeixam dúvidas quanto a ela ser uma manifestação do DeusVivo.

Muitas pessoas não acreditam em milagre. Não percebem que a vida é um milagre, que o que realmente conta é o prodígiode estar vivo e de viver, e que  uma  vida que procede de uma única fonte, de Deus. A mesma vida que está em mimestá também no outro, seja homem, animal ou planta. Os seres vivos formam uma comunidade de vida, na qual todosdependem de todos para continuar vivendo. E esta verdadedeveria fazer-nos sentir um profundo respeito pela vida que está no outro.

Esses atributos da vida atestam não  sua origem divina, mas também que, por meio dela, Deus está presente emtodos e exerce assim sua soberania. As Escrituras estãorepletas de exemplos de pessoas que foram conduzidas porDeus a um destino através das circunstâncias da vida. Ali vemos que a umas a vida leva, e a outras, empurra. NoGênesis  exemplos disso: Abraão, Isaque, Jacó, José, entreoutros. E nos outros livros da Bíblia  muitos mais. Como umalfaiate, Deus nos costura com a linha da vida.

Neste ponto, é provável que o leitor tenha em mente aseguinte questão: Como poderei lidar com a vida se eu mal aconheço? Eu respondo: do mesmo modo que dirige umautomóvel ou usa um computador. Você não precisa sabertudo sobre automóveis ou computadores para usá-los. Basta saber relacionar-se adequadamente com essas máquinas.Assim é com a vida. Ela não exige que você conheça tudo aseu respeito. Requer apenas que sua relação com ela seja sã.Não fique preocupado. Sobre como deve ser tal relação, encontrará informação suficiente nas instruções de Jesus, asquais incrementam as instruções do Gênesis e de todo oAntigo Testamento. Leia: As Exigências de Jesus.

O fundamental é assumir um compromisso total com a vida.


O compromisso total com a vida

A mensagem de Gênesis 1 e 2 sobre a origem divina da vida nos impressiona e até desperta em nós o desejo de conhecermelhor o Autor e Senhor da vida, de respeitar mais a vida, deextrair o máximo dela.

A vida é a dádiva mais preciosa que o homem recebeu deDeus; por isso, o Gênesis coloca como primeiro compromissodo homem o compromisso com a vida. Não é à toa que oGênesis coloca a criação, isto é, a doação da vida, emprimeiro lugar. E, de fato, o que é o ser humano sem a vida que  nele e sem a que  no mundo?

Apesar disso, Gênesis mostra (a partir do capítulo 3) que nósnão assumimos o compromisso com a vida; pelo contrário,fizemos um pacto com a morte. E realmente, nossas formas de vida e estruturas não têm dado expressão adequada à vida. Sempre a limitam e a impedem de manifestar-se complenitude e intensidade. O desafio que o Gênesis nos propõe é encontrar novas formas de vida e estruturas que superem as existentes e sejam mais coerentes com a vida no sentido deDeus.

Em vez de uma relação  com a vida, temos com elarelacionamentos que são, em geral, doentios. Nossatendência é desprezá-la, destruí-la. Pensamos que ela é umacoisa à que todos temos direito e podemos fazer com ela o que bem entendermos. Não são poucos os que a odeiam.Descobrimos muitas maneiras de destruir a vida que está emnós e a que está no mundo. Toda a destruição provocada durante milênios, devido a nosso desdém pela vida, é umatragédia de proporções inimagináveis, que está pondo emperigo nossa sobrevivência neste mundo.

Nos dias de hoje, quando o desdém pela vida adquire umaespantosa dimensão, o compromisso com a vida torna-se cada vez mais relevante. Precisamos assumi-lo hoje mais do que nunca. Deus  fez sua parte. Ele assumiu, em JesusCristo, o mais sério compromisso com a vida humana e com o mundo do homem (leia João 3:16). O próprio Senhor Jesusanunciou claramente o objetivo de sua atividade terrena: "Euvim para que tenham vida e vida completa" (João 10:10).

O compromisso com a vida, que o Gênesis coloca em primeirolugar, transforma-se, em Jesus Cristo, numa exigência total que a tudo sobrepuja. Leonhard Goppelt (Teologia do Novo Testamento) a expressa assim: "Temos que agir, sempre eem toda parte, de tal maneira que tornemos possível a vida no sentido de Deus!"

Deus faz esta exigência porque, através de toda a história, o ser humano assumiu mais um compromisso com os aspectosmateriais relacionados com a vida e não com ela mesma. E saber que sempre estivemos dispostos a sacrificar a própriavida em favor desse materialismo! Mas essa é a "vida" no sentido do homem: uma espantosa deturpação.

Um resumo da mensagem do Gênesis sobre o Senhor da vida pode ser este: "A vida  merece ser chamada assim quandoa vemos com os olhos de Deus". E quanto à própria vida, pode ser o seguinte: "Não resista à vida no sentido de Deus.Fazer isso significa colocar-se numa situação de extremo perigo" (relacionar com Gênesis 3). Seu apelo é: "Diga sim à vida e ela dirá sim a você".

1 comentario:

  1. Por que o autor argumenta que é melhor concentrar-se nas riquezas espirituais do Gênesis em vez de combater a teoria da evolução? Greeting : Telkom University

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