sábado, 26 de marzo de 2011

aramaico beira a perfeição em filme de Gibson -Publicidade


Reconstrução do aramaico beira a perfeição em filme de Gibson

REGINALDO GOMES DE ARAÚJO
Especial para a Folha de S.Paulo

É de causar surpresa o resultado da reconstrução do aramaico falado no filme de Mel Gibson, "A Paixão de Cristo". Causa surpresa mesmo --e apesar de-- com toda a violência existente na película.

Além do trabalho de tradução do roteiro em inglês para o aramaico feito por um católico, o padre jesuíta William Fulco, os atores provavelmente tiveram um treinamento excepcional para articular o aramaico sem o sotaque do inglês americano, o que nem sempre é fácil.

A tarefa complica-se porque é uma língua que "supostamente" teria sido falada por Jesus, pois ninguém sabe ao certo como e de que forma Jesus falava o aramaico. Mas, apesar das dificuldades, o trabalho de tradução é realmente bom. Segundo Fulco, baseado numa variedade de literatura em aramaico antigo --como o aramaico bíblico do livro de Daniel e Esdras--, literatura targúmica e séculos de siríaco e hebraico, foi possível realizar a reconstrução do aramaico do tempo de Jesus.

Para quem está familiarizado com aramaico e seus diversos dialetos, a pronúncia utilizada no filme aproxima-se muito da ocidental ou palestinense. É um tipo de aramaico que remete ao aramaico bíblico dos livros de Daniel e Esdras e ao aramaico targúmico. Característica desse grupo ocidental é a preferência pelo som vocálico --"a"-- que pode ser ouvido durante todo o filme, e não o som de "o" que é típico das regiões mais orientais.

Outra característica é o uso dos sufixos pronominais --fenômeno típico das línguas semíticas quando usam o que chamamos de pronomes pessoais do caso oblíquo-- que se escutam nesses diálogos (por exemplo, o "khon" que escutamos muitas vezes na fala de Jesus referindo-se ao pronome de segundo pessoa plural). Enfim, ouve-se uma reconstrução gramatical do aramaico perfeita, excluindo-se alguns problemas fonéticos e hebraísmos.

Podemos constatar ainda alguns problemas que soam estranhos para o ouvido:
1º) A pronúncia do sufixo pronominal da segunda pessoa masculina (te, ti, teu, tua) soa estranha, pois se esperaria um som "ax", como o de "x" no alemão "nacht", mas ouve-se sempre "ak". Tal dificuldade está no sistema fonético dos próprios autores, que não possui o fonema "x". Esse tipo de som se encontra em todas as línguas semíticas (árabe, hebraico siríaco, etiópico etc);

2º) Poderia ter sido evitada a influência de um certo hebraísmo, pois o uso de palavras como "adonai", "adoni" (meu senhor, senhor) não são encontradas no aramaico da época. O correspondente seria "mar", "mari".

Apesar desses e de outros pequenos problemas, os autores mostraram um trabalho de valor na reprodução do aramaico.

O que é

A língua aramaica, juntamente com o acádico árabe e fenício, constitui a família de língua semítica dos habitantes das tribos nômades do deserto da Síria.

O aramaico surgiu na região do deserto da Síria. Chegou a ser língua franca --como é hoje o inglês-- e passou a ser usada na Palestina como língua principal. Segundo a tradição judaica, o aramaico foi falado por Adão (Sanhedrin 38b) e foi, provavelmente, a língua materna de Jesus e de numerosos rabinos do Talmude e Midrash.

Por ter sido uma língua dominante no mundo judaico, muitos textos importantes foram escritos em aramaico. Partes do livro de Daniel e Esdras Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) estão em aramaico. Muitos rolos de Qumran, encontrados nos anos 50, nas proximidades do Mar Morto, estão em aramaico. Hoje ainda é usada na liturgia da igreja siro-ortodoxa.

Origem

A palavra aramaico vem do termo "aram", nome do quinto filho de Sem, o primogênito de Noé (Gn 10,21). Foi também usado como nome de um lugar 4.000 anos atrás. O livro do Gênesis menciona lugares chamados de Paddam-Aram e Aram-Naharaim. Todavia, não há referências diretas ao povo aramaico (arameu) até o século 11, quando o soberano assírio Tiglat Falasar 1º (1115-1103) deparou-se com eles na sua expedição militar ao longo do Eufrates. Esse povo era considerado, aparentemente, pequeno; formava reinos independentes, primeiro na Síria, e expandiu-se até o Golfo Pérsico.

O aramaico falado por Jesus já não existe mais como tal, mas uma moderna versão é ainda falada por pequenos grupos no Oriente Médio, o que denominamos de aramaico moderno. É falado hoje em diversas cidades próximas de Damasco (Síria), a maior sendo Ma'lula, e também por alguns cristãos no sudeste da Turquia, presentes em Tur'Abdin, além de alguns de milhares de imigrantes que vivem nos EUA e na Europa.

Reginaldo Gomes de Araújo é professor doutor de aramaico do Departamento de Letras Orientais da FFLCH-USP

4 comentarios:

  1. Polêmica faz ferver sangue de "A Paixão de Cristo"
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    PEDRO BUTCHER
    Crítico da Folha de S.Paulo

    Quando os primeiros rumores em torno de "A Paixão de Cristo" começaram a pipocar, em agosto de 2002, Mel Gibson já estava na Itália, terminando de escolher as locações do filme (na região de Basilicata, ao sul do país). Um mês depois, o projeto foi oficialmente anunciado em entrevista coletiva na sala Fellini da Cinecittà, o lendário estúdio romano onde ele filmou as cenas de interior.

    Na entrevista, Gibson contou que "Paixão" era o projeto da sua vida. A idéia surgira dez anos antes, durante uma crise pessoal, e seu objetivo era ser o mais fiel possível ao relato bíblico das últimas horas da vida de Cristo. Por isso, o filme seria falado em latim e aramaico. "É claro que ninguém quer tocar em um filme falado em línguas mortas. Eles acham que estou louco", disse Gibson, referindo-se aos executivos dos grandes estúdios. Coube, então, à Icon Productions, que pertence ao ator, bancar sozinha os US$ 25 milhões da produção, pois nenhuma grande produtora queria se comprometer. Além disso, Gibson não queria nenhuma grande estrela no elenco.

    A imprensa tampouco o levou a sério. Revistas especializadas apostavam em um fracasso, prevendo que o filme faria, no máximo, US$ 30 milhões em seus primeiros dias em exibição. Fez US$ 82 milhões, e no próximo fim de semana deverá ultrapassar US$ 300 milhões, sem contar rendas internacionais.

    Todos quebraram a cara ao subestimar a capacidade de Gibson, que desde o início agiu como um profundo conhecedor das entranhas do jogo hollywoodiano. Cada passo parece ter sido meticulosamente calculado, da decisão por anunciar o projeto na Itália, a uma distância segura do frenesi de Los Angeles e a poucos quilômetros de distância do Vaticano, ao forte estímulo à polêmica, além de uma seletiva aparição em programas de televisão.

    Absolutamente tudo foi motivo para polêmica. Até mesmo o título, que precisou ser trocado duas vezes por questões de direitos autorais, até chegar ao definitivo "The Passion of the Christ".

    "A Paixão de Cristo" ocupou a mídia por quase um ano inteiro antes mesmo de estar pronto, por conta de rumores de se tratar de uma versão ultraviolenta e possivelmente anti-semita da morte de Cristo, estimulando a visão de que os judeus teriam sido responsáveis pela morte de Jesus.

    Gibson usa sempre a mesma defesa: "O filme é apenas uma dramatização fiel do que a Bíblia diz". Apoiado na própria popularidade, o astro se fez arauto da verdadeira história da morte de Cristo.

    Em 2003, a polêmica foi alimentada, com o roteiro do filme e cópias piratas surgindo misteriosamente nas mãos de grupos judaicos, que logo passaram a esbravejar contra o filme, ajudando o marketing espontâneo.

    A polêmica aumentou com a estréia do filme (nos EUA, ela aconteceu no dia 25 de fevereiro, Quarta-Feira de Cinzas, em mais de 2.000 salas). Os cinemas encheram, não apenas graças à romaria cristã, mas também pelo público atraído pela propalada violência.

    As grandes esperanças de Gibson, agora, são de que o filme seja absolvido das pré-acusações de anti-seimitismo e, uma vez avalizado pelo status de "blockbuster mundial", chegue intacto à corrida do Oscar 2005. Como "O Senhor dos Anéis", é um exemplo de triunfo pessoal. O que, no fim das contas, costuma suplantar qualquer polêmica. Verdadeira ou falsa.

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  2. Filme de Gibson não ultrapassa sentimento tradicional
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    ROBERTO ROMANO
    Especial para a Folha de S.Paulo

    Para entender a plástica e a doutrina do filme, é preciso retornar à igreja anterior ao Concílio Vaticano 2. A película reproduz o catolicismo gerado no Império Romano e transposto às sociedades feudais e modernas. O juízo sobre os judeus naquele setor religioso era claro: os compatriotas de Jesus o destruíram com sumo dolo, pecaram contra a divindade trina da qual o mesmo Jesus seria a segunda pessoa. O judaísmo acolhe deicidas.

    "Oremus et pro perfidis Judaeis" (oremos pelos pérfidos judeus): "Eterno e onipotente Deus, que não vos afastais nem mesmo da perfídia judaica, escutai a nossa prece, a qual elevamos pela cegueira daquele povo, para que ele conheça a luz --que o Cristo existe-- e se afaste das trevas".

    Tais invocações eram feitas na Sexta-Feira da Paixão. Defensores do catolicismo afirmam que "pérfido" significa apenas "descrente". Em latim, o termo não evocaria algo perverso. O missal traduzido para as línguas vulgares (no francês "perfide", no alemão "treulos" etc) teria produzido a idéia depreciativa. Antes do Concílio, no entanto, com pleno conhecimento de causa, o vocábulo "pérfido" serviu para diminuir os judeus.

    Ele significa "traidor" em Horácio, Cícero, Tácito, lidos pelos doutores eclesiásticos. João 23, o papa humano, manteve na oração apenas o "rezemos pelos judeus", sem adjetivos infamantes (25/7/ 1960).

    Quem hoje reza em latim, como os tradicionalistas católicos, usa paramentos romanos, celebra cerimônias sagradas de costas para os fiéis, luta contra o capitalismo liberal e contra o socialismo, abomina o aborto e as experiências homossexuais também guarda a raiva contra os "pérfidos" judeus.

    Essa "Paixão de Cristo" é tão anti-semita quanto a igreja, até o Vaticano 2. Ainda hoje existe muito ódio aos judeus entre cristãos. Sob esse ângulo, o filme é bastante moderado. Gibson não ultrapassa o sentimento tradicional e difere de outros anti-semitismos católicos, como o de Carl Schmitt.

    Na primeira parte de sua vida, aquele jurista foi católico e conservador. Ao seguir o nazismo, ele exacerbou o ressentimento contra os judeus e saiu da igreja. A prevenção exibida por Gibson tem outro feitio: o seu filme segue perfeitamente as normas éticas e estéticas da igreja.

    A comunhão católica se produziu como síntese dos cinco sentidos. Para cada um deles há ritos e formas. O concílio de Nicéia (ano 325) proclamou: "Cremos em um Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis".

    No catolicismo, o infinito penetra a finitude, o verbo se faz carne. A sua estética valoriza a imagem (combatida por arianos e reformados), um penhor divino.
    Como diz o Padre Vieira, referindo-se à Paixão: se o padre fala dos sofrimentos de Jesus, a platéia boceja. Se ele mostra o retrato do homem coroado de espinhos, a emoção empolga a fé.

    Essa técnica persuasiva é usada em cerimônias e procissões onde o divino aparece com violência maior ou menor. O circo efetivou o que no filme de Gibson se exaspera: os olhos são lacerados pelo escândalo de um Deus que sofre. O Messias dolorido (salvo em Isaías, 53) nunca foi aceito pelo judaísmo.

    A dor cristã é tamanha que a percebemos, sobretudo na película de Gibson, como um fim em si mesma. Flagelos arrastam novos martírios e o suplício infindável (no filme, a tortura de Jesus pelos soldados) adquire força erótica. Gregos e romanos viam na morte cristã uma loucura assumida como verdade.

    A pergunta de Pilatos ("Quid est veritas?"), irônica e perplexa, mostra o quanto a Paixão de Cristo é um paradoxo para a racionalidade humana. Ontem e hoje.

    Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo) e "O Caldeirão de Medéia" (Perspectiva), entre outras obras

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  3. Mel Gibson promove "fundamentalismo capitalista"
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    MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
    Especial para a Folha de S.Paulo

    "No princípio era o verbo", lemos no Evangelho de S. João. Já no Evangelho de Mel Gibson, do princípio ao fim o que impera é a violência e a escarnação. Não se trata, no entanto, da idéia fáustica de Goethe, que reverteu a frase bíblica em "No Início foi o Ato", o que levou Freud a pensar as origens traumáticas do Eu e da humanidade. Em Gibson não existe reflexão, apenas o mais tosco esteticismo da violência (aliás, onipresente no cinema atual).

    Ele e seus seguidores denominam essa fixação na brutalidade de "realismo" e "fidelidade" à história. Nada poderia ser menos verdadeiro. Apesar da aura que se tentou criar em torno de "A Paixão de Cristo" (sua origem em uma "crise pessoal" de Gibson, seu "low budget" de "apenas" US$ 25 milhões), o filme mantém as características das megaproduções de Hollywood --e muito da estrutura do pensamento maniqueísta que costuma marcá-las.

    Na verdade assistimos ao desfile de chavões como aquele típico do cinema-ilusão que, seguindo as doutrinas fisiognômicas do século 19, estabelece que os bons devem ter cara de anjinhos (no filme de Gibson eles devem ter dentes perfeitos) e os maus (no caso, os judeus e os torturadores romanos) são feios (têm cara de malvados avaros, ou simplesmente têm dentes podres). Do ponto de vista hollywoodiano, James Caviezel não poderia ser mais "realista" e "fiel". É um atleta, ex-jogador de basquete, que representa um superJesus ariano com olhos de mel. Mônica Bellucci, a Maria Madalena, aparentemente não se desvencilhou do papel de Persephone de "Matrix Reloaded", o que torna tudo quase "surrealista".

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  4. Assistimos à história de Jesus, de sua prisão no Getsêmani até sua crucificação e ressurreição. O roteiro pegou de cada evangelho o que quis. Introduziu elementos narrativos e simbólicos como um Satanás andrógeno (que parece ter escapado do set de filmagens de algum filme de terror pueril). A suposta fidelidade do filme consistiria na apresentação em "primeiro plano" da Paixão (dor) de Cristo. Nesse ponto pode-se falar apenas de uma superexposição da tortura do corpo que beira o mau gosto e faz lembrar a expressão que Godard cunhou nos anos 60 para criticar a exploração das imagens de terror do Holocausto: estilo "pornoconcentracionário". Gibson foi original neste ponto: criou o estilo "pornocristão".

    O filme é anti-semita? Difícil ser mais anti-semita do que os evangelhos. Mas não resta dúvida que Gibson faz uma seleção das passagens dos evangelistas e foca no ódio dos judeus com relação a Jesus. Seu pensamento maniqueísta (inspirado em religiosas anti-semitas do século 18 que ele admira) tende para um fundamentalismo cristão que é canhestro, mas também, hoje, pode vir a ser perigoso.

    Sua intenção evangelizante e "cruzada", de conversão pelas imagens que deveriam chocar (chocam apenas pela má qualidade do resultado), traz água para o moinho das lutas fundamentalistas. Fazer hoje um filme com esse enfoque não pode ser considerado algo inocente. O pai de Gibson não precisava ajudar a recordar essa mensagem anti-semita, ao insistir publicamente em relativizar e banalizar o Holocausto. O filme fala por si. Aliás, ele não fala (sua linguagem é muda, pois incompreensível e artificial: aramaico e latim), mas, sim, pretende de modo anti-racional pregar pelas imagens, como na Idade Média e na contra-Reforma. Em vez da mensagem de "tolerância, amor e perdão", que o diretor diz ter visado, vemos uma mensagem de violência e ódio.

    Mas é claro que seu fundamentalismo cristão (e a polêmica daí decorrente) também converge para o "fundamentalismo capitalista". As salas de cinema estão cheias. Gibson já esteve muito melhor ao atuar como ator no papel de Rocky, o galo voador de "A Fuga das Galinhas". Pelo visto ele nunca mais conseguirá atingir as mesmas alturas.

    Márcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária pela Universidade de Berlim, professor na Unicamp e autor de "Adorno" (Publifolha), entre outros

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